quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O último soldado do grande jornalismo


O novo livro de Fernando Morais é um documento histórico sobre a ação de mercenários e terroristas na tentativa de afundar Cuba e derrubar Fidel Castro.


Fernando Morais e "Os Últimos Soldados da Guerra Fria": documento histórico.
Nesses tempos em que jornalismo é esculhambado sem piedade na internet – como diz Lucas Mendes, um ícone da profissão – nada mais estimulante do que a chegada às livrarias do novo livro de Fernando Morais, “Os Últimos Soldados da Guerra Fria”. É a segunda incursão de Fernando em Cuba como repórter investigativo. A primeira resultou em “A Ilha”, um best-seller retumbante que ecoou em quase todas as línguas do planeta, escrito em 1976, quando Fernando acabava de deixar o Jornal da Tarde, onde iniciou sua trajetória como um dos grandes jornalistas do país. “Os Últimos Soldados” dá um passo gigantesco e serve como resposta àqueles que consideram “A Ilha” um press-release do regime de Fidel Castro.
Em fevereiro de 2005, durante um jantar no célebre restaurante La Floridita, em Havana, o presidente da Assembléia Nacional de Cuba, Ricardo Alarcón, comunicou a Fernando que finalmente seriam liberados para ele os arquivos secretos contendo toda a documentação dos serviços de inteligência da ilha sobre o grupo de agentes de inteligência – a RedeVespa – que Cuba infiltrara no coração de organizações de extrema direita de Miami.
De posse dos documentos, Morais saiu a campo e escreveu um livro demolidor, de cuja leitura depende, hoje, qualquer avaliação honesta que se queira fazer desse quase meio século em que Fidel Castro governou Cuba. O autor relata como os espiões da Rede Vespa se instalaram na Flórida, mantendo segredo de suas atividades até para suas famílias. Para isso tinham de construir disfarces construídos pela inteligência cubana, recebiam novas identidades, às vezes roubadas de bebês mortos nos EUA, e eram obrigados a decorar fatos fictícios sobre toda uma vida pregressa que não tinham vivido. Com poucos recursos, os agentes tinham de achar trabalho para se manter nos Estados Unidos e passaram a morar em precárias quitinetes de subúrbio.
Com o colapso da União Soviética, a partir de 1991, Cuba passou a depender fortemente do turismo para contornar a crise econômica em que o país mergulhou. Foi quando as 41 organizações anticastristas da Flórida puseram em prática o que antes pregavam em panfletos despejados em Havana às custas de invasões do espaço aéreo cubano. As palavras de ordem eram claras: “A opinião pública internacional precisa saber que é mais seguro fazer turismo na Bósnia-Herzegovina do que em Cuba”.
Em cinco anos esses ativistas de extrema direita, que tinham como líder máximo Jorge Mas Canosa, presidente da Fundação Nacional Cubano-Americana, com sede em Miami, efetuaram 127 ataques contra a ilha que incluíam jogar pragas nas lavouras cubanas, interferir nas transmissões da torre de controle do aeroporto de Havana, atentados a bomba nos melhores hotéis do país e rajadas de metralhadoras disparadas de lanchas vindas da Florida contra turistas estrangeiros em praias cubanas.
De nada adiantavam os constantes protestos oficiais enviados a Washington pelo governo da ilha, uma vez que tais ações eram do conhecimento do governo americano e muitas vezes financiadas pelo FBI. Foi a essa altura que entrou em ação a Rede Vespa, um seleto grupo composto por doze homens e duas mulheres que se infiltraram em algumas das organizações anticastristas com a missão de colher informações, antecipar-se aos ataques e deter a onda terrorista que tentava a qualquer preço derrubar o líder cubano.
Com o objetivo de poupar a reputação da comunidade cubana no exílio, a extrema direita passou a arrebanhar mercenários em países da América Central para fazer o trabalho mais sujo. Um deles era o salvadorenho Ernesto Cruz León, de 26 anos, que já fora guarda-costas do cantor Rick Martin. Fã de Sylvester Stallone, Cruz León conta que se envolveu nos ataques porque queria viver aventuras parecidas com as de seu ídolo.
Com essa motivação, aceitou uma missão quase suicida: colocar bombas em hotéis e num restaurante em Havana por apenas US 1.500 cada uma. Uma informação chocante apurada por Fernando Morais é que esses mercenários centro-americanos sequer conheciam a situação cubana nem sabiam o que estava em questão. Ao contar sua história ao jornalista, Cruz León explicou o que o moveu a ajudar os anticastristas: "Eu ia pôr bombas num país que nem sabia qual era, voltaria para casa e iria para a cama com Sharon Stone (como acontece com Stallone no filme O Especialista). Me senti um espião. Me senti o máximo".
Entre os documentos liberados para Morais pelo governo cubano estava o material que Fidel Castro enviou a Bill Clinton pedindo que os ataques à ilha parassem. O inusitado do diálogo é que ele foi intermediado por Gabriel García Márquez, o Prêmio Nobel colombiano, amigo de Fidel e defensor de seu projeto político. Clinton ouviu Fidel e os ataques pararam.
Mas não demorou muito até a Rede Vespa ser desbaratada pelo FBI e seus integrantes levados a um julgamento que durou quase dois anos. Hoje, cinco espiões do grupo seguem presos, os outros foram libertados, beneficiados por delação premiada. Morais acredita que, se Barack Obama se reeleger, deve rever o julgamento. Pode tentar trocar espiões cubanos por presos políticos americanos em Cuba. Só não faz isso já para não perder votos na Flórida, tal é o poder dessas organizações de Miami, que Fidel não hesita em chamar de gusanos (vermes)


“Os Últimos Soldados da Guerra Fria” deixa em aberto uma pergunta que não quer calar: como poderia ter sobrevivido, sem mãos de ferro, um governo que a partir do momento em que se instalou no poder, em 1959, tem sido vítima das mais perversas formas de agressão? A mais grave delas ocorreu já em 1961, quando Cuba foi alvo de uma tentativa frustrada de invasão, conhecida como Baía dos Porcos, executada por cubanos exilados com o apoio das Forças Armadas dos Estados Unidos, treinados e dirigidos pela CIA, com o objetivo de derrubar o governo da ilha e assassinar seu líder. Em situação semelhante, o regime socialista de Salvador Allende, ao tentar conduzir os conflitos no Chile pela via democrática, acabou sendo vítima, em 1973, do golpe mais sangrento que a América Latina jamais conheceu – como de costume orquestrado e financiado por Washington.


Nas páginas finais do livro Fernando Morais deixa registrada sua gratidão a muitos cubanos sem cuja paciência e boa vontade “Os Últimos Soldados” não existiria. Entre esses agradecimentos um merece destaque, aquele dirigido a amigos da ilha “que abriram as portas de suas casas e de seus corações em momentos turvos da minha alma, durante a realização do trabalho em Cuba”. Os que lerem o livro entenderão as razões dessa deferência especial. Com certeza foi graças a ela que Fernando pode escrever, mais que um documento histórico, um relato capaz de revirar as tripas e, em alguns momentos, levar às lágrimas até os corações mais duros. De resto o livro é um brilhante exercício de jornalismo como há muito não se via, leitura obrigatória para quem quer compreender melhor a controvertida história da América Latina, a começar pelos iniciantes na carreira jornalística e – porque não? – por seus veteranos mais tarimbados.


Marco Lacerda é jornalista, escritor e Editor Especial do Dom Total
17/10/2011

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