segunda-feira, 24 de outubro de 2011

O Operário Em Construção Vinicius de Moraes




E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:


- Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.


E Jesus, respondendo, disse-lhe:


- Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.


Lucas, cap. V, vs. 5-8.


Era ele que erguia casas


Onde antes só havia chão.


Como um pássaro sem asas


Ele subia com as casas


Que lhe brotavam da mão.


Mas tudo desconhecia


De sua grande missão:


Não sabia, por exemplo


Que a casa de um homem é um templo


Um templo sem religião


Como tampouco sabia


Que a casa que ele fazia


Sendo a sua liberdade


Era a sua escravidão.


De fato, como podia


Um operário em construção


Compreender por que um tijolo


Valia mais do que um pão?


Tijolos ele empilhava


Com pá, cimento e esquadria


Quanto ao pão, ele o comia...


Mas fosse comer tijolo!


E assim o operário ia


Com suor e com cimento


Erguendo uma casa aqui


Adiante um apartamento


Além uma igreja, à frente


Um quartel e uma prisão:


Prisão de que sofreria


Não fosse, eventualmente


Um operário em construção.


Mas ele desconhecia


Esse fato extraordinário:


Que o operário faz a coisa


E a coisa faz o operário.


De forma que, certo dia


À mesa, ao cortar o pão


O operário foi tomado


De uma súbita emoção


Ao constatar assombrado


Que tudo naquela mesa


- Garrafa, prato, facão -


Era ele quem os fazia


Ele, um humilde operário,


Um operário em construção.


Olhou em torno: gamela


Banco, enxerga, caldeirão


Vidro, parede, janela


Casa, cidade, nação!


Tudo, tudo o que existia


Era ele quem o fazia


Ele, um humilde operário


Um operário que sabia


Exercer a profissão.


Ah, homens de pensamento


Não sabereis nunca o quanto


Aquele humilde operário


Soube naquele momento!


Naquela casa vazia


Que ele mesmo levantara


Um mundo novo nascia


De que sequer suspeitava.


O operário emocionado


Olhou sua própria mão


Sua rude mão de operário


De operário em construção


E olhando bem para ela


Teve um segundo a impressão


De que não havia no mundo


Coisa que fosse mais bela.


Foi dentro da compreensão


Desse instante solitário


Que, tal sua construção


Cresceu também o operário.


Cresceu em alto e profundo


Em largo e no coração


E como tudo que cresce


Ele não cresceu em vão


Pois além do que sabia


- Exercer a profissão -


O operário adquiriu


Uma nova dimensão:


A dimensão da poesia.


E um fato novo se viu


Que a todos admirava:


O que o operário dizia


Outro operário escutava.


E foi assim que o operário


Do edifício em construção


Que sempre dizia sim


Começou a dizer não.


E aprendeu a notar coisas


A que não dava atenção:


Notou que sua marmita


Era o prato do patrão


Que sua cerveja preta


Era o uísque do patrão


Que seu macacão de zuarte


Era o terno do patrão


Que o casebre onde morava


Era a mansão do patrão


Que seus dois pés andarilhos


Eram as rodas do patrão


Que a dureza do seu dia


Era a noite do patrão


Que sua imensa fadiga


Era amiga do patrão.


E o operário disse: Não!


E o operário fez-se forte


Na sua resolução.


Como era de se esperar


As bocas da delação


Começaram a dizer coisas


Aos ouvidos do patrão.


Mas o patrão não queria


Nenhuma preocupação


- "Convençam-no" do contrário -


Disse ele sobre o operário


E ao dizer isso sorria.


Dia seguinte, o operário


Ao sair da construção


Viu-se súbito cercado


Dos homens da delação


E sofreu, por destinado


Sua primeira agressão.


Teve seu rosto cuspido


Teve seu braço quebrado


Mas quando foi perguntado


O operário disse: Não!


Em vão sofrera o operário


Sua primeira agressão


Muitas outras se seguiram


Muitas outras seguirão.


Porém, por imprescindível


Ao edifício em construção


Seu trabalho prosseguia


E todo o seu sofrimento


Misturava-se ao cimento


Da construção que crescia.


Sentindo que a violência


Não dobraria o operário


Um dia tentou o patrão


Dobrá-lo de modo vário.


De sorte que o foi levando


Ao alto da construção


E num momento de tempo


Mostrou-lhe toda a região


E apontando-a ao operário


Fez-lhe esta declaração:


- Dar-te-ei todo esse poder


E a sua satisfação


Porque a mim me foi entregue


E dou-o a quem bem quiser.


Dou-te tempo de lazer


Dou-te tempo de mulher.


Portanto, tudo o que vês


Será teu se me adorares


E, ainda mais, se abandonares


O que te faz dizer não.


Disse, e fitou o operário


Que olhava e que refletia


Mas o que via o operário


O patrão nunca veria.


O operário via as casas


E dentro das estruturas


Via coisas, objetos


Produtos, manufaturas.


Via tudo o que fazia


O lucro do seu patrão


E em cada coisa que via


Misteriosamente havia


A marca de sua mão.


E o operário disse: Não!


- Loucura! - gritou o patrão


Não vês o que te dou eu?


- Mentira! - disse o operário


Não podes dar-me o que é meu.


E um grande silêncio fez-se


Dentro do seu coração


Um silêncio de martírios


Um silêncio de prisão.


Um silêncio povoado


De pedidos de perdão


Um silêncio apavorado


Com o medo em solidão.


Um silêncio de torturas


E gritos de maldição


Um silêncio de fraturas


A se arrastarem no chão.


E o operário ouviu a voz


De todos os seus irmãos


Os seus irmãos que morreram


Por outros que viverão.


Uma esperança sincera


Cresceu no seu coração


E dentro da tarde mansa


Agigantou-se a razão


De um homem pobre e esquecido


Razão porém que fizera


Em operário construído


O operário em construção.

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