domingo, 16 de outubro de 2011

Filha da ditadura argentina descobre que pai adotivo matou os biológicos




Victoria Montenegro se lembra de uma infância cheia de discussões terríveis durante o jantar. O tenente coronel Hernan Tetzlaff, chefe da família, contava operações militares das quais havia participado nas quais “subversivos” eram torturados ou mortos. As discussões costumavam terminar com ele “jogando sua arma sobre a mesa”, diz ela.


Foi necessária uma busca incessante por parte de um grupo de direitos humanos, um teste positivo de DNA e uma década para superar a negação para que Montenegro, 35, descobrisse que Tetzlaff, na verdade, não era seu pai – nem o herói que ele dizia ser.


Em vez disso, ele foi o homem responsável por assassinar seus pais verdadeiros e tomá-la ilegalmente como filha, diz ela.


Ele confessou a ela o que havia feito em 2000, diz Montenegro. Mas foi só depois que ela testemunhou num julgamento aqui na primavera passada que finalmente entrou em termos com seu passado, descartando de uma vez por todas o nome que Tetzlaff e sua mulher haviam lhe dado – Maria Sol – depois de falsificar sua certidão de nascimento.


O julgamento, durante a fase final de ouvir testemunhas, mostrou pela primeira vez que os altos líderes militares do país realizaram um plano sistemático para roubar bebês de supostos inimigos do governo.


Jorge Rafael Videla, que liderou os militares durante a ditadura na Argentina, foi acusado de liderar a iniciativa para roubar bebês de mães que estavam em centros de detenção clandestinos e entregá-los aos militares ou a oficiais de segurança, ou até para terceiros, sob a condição de que os novos país escondessem a verdadeira identidade da criança. Videla é um dos 11 oficiais que estão sendo julgados por 35 atos de apropriação ilegal de menores.


O julgamento também está revelando a cumplicidade de civis, incluindo juízes e oficiais da Igreja Católica Romana.


O sequestro de cerca de 500 bebês foi um dos capítulos mais traumáticos da ditadura militar que governou a argentina de 1976 a 1983. O esforço desesperado por parte de mães e avós para localizar seus filhos e netos desaparecidos nunca foi abandonado. Foi um dos motivos pelos quais os presidentes civis eleitos depois de 1983 não perdoaram os militares, embora tenha sido concedida anistia para outros crimes de “guerra suja”.


“Mesmo os muitos argentinos que consideraram a anistia como um mal necessário não estavam dispostos a perdoar os militares por isso”, disse José Miguel Vivanco, diretor da Human Rights Watch para as Américas.


Na América Latina, o roubo de bebês foi praticamente exclusivo da ditadura argentina, diz Vivanco. Não houve nada parecido na ditadura de 17 anos do vizinho Chile.


Uma diferença notável foi o papel da Igreja Católica. Na Argentina, a igreja apoiou em grande parte o governo militar, enquanto que no Chile ela confrontou o governo do general Augusto Pinochet e procurou denunciar seus crimes de direitos humanos, disse Vivanco.


Padres e bispos da Argentina justificaram seu apoio ao governo em questões de segurança nacional, e defenderam o sequestro de crianças como uma forma de garantir que elas não fossem “contaminadas” por inimigos esquerdistas dos militares, disse Adolfo Peres Esquivel, defensor dos direitos humanos e vencedor do prêmio Nobel que investigou dúzias de desaparecimentos e testemunhou no julgamento no mês passado.


Montenegro respondeu: “eles acharam que estavam tendo uma atitude cristã nos batizando e nos dando a chance de ser pessoas melhores do que nossos pais. Eles achavam e sentiam que estavam salvando nossas vidas.”


Funcionários da Igreja na Argentina e no Vaticano recusaram-se a responder perguntas sobre seu envolvimento nas adoções secretas e seus conhecimentos sobre elas.


Durante muitos anos, a busca por crianças desaparecidas foi inútil. Mas isso mudou na última década graças a um maior apoio do governo, ao avanço das tecnologias forenses e a um crescente banco de dados genético reunido após anos de testes. A última adotada a recuperar sua identidade real, Laura Reinhold Siver, aumentou o total de descobertas para 105 em agosto.


Ainda assim, o processo de aceitar a verdade pode ser longo e tortuoso.


Durante anos, Montenegro rejeitou as iniciativas por parte de oficiais e ativistas para descobrir sua verdadeira identidade. Desde criança, ela recebeu “uma forte educação ideológica” de Tetzlaff, um oficial militar num centro de detenção secreto.


Se ela pegasse um panfleto de esquerda na rua, “ele me fazia sentar durante horas para me dizer o que os subversivos haviam feito para a Argentina”, diz ela.


Ele a levou para um centro de detenção onde passava horas discutindo operações militares com seus colegas, “como eles haviam matado e torturado pessoas”, diz ela.


“Eu cresci achando que tinha havido uma guerra na Argentina, e que nossos soldados tinham ido para a guerra para garantir a democracia”, diz ela. “E que não havia pessoas desaparecidas, que tudo isso era uma mentira.”


Ela disse que ele não permitia que ela assistisse a filmes sobre a “guerra suja”, incluindo “A História Oficial”, um filme de 1985 sobre um casal de classe média-alta que criou uma menina retirada de uma família que desapareceu.


Em 1992, quando ela tinha 15 anos, Tetzlaff foi detido brevemente por suspeita de ter roubado um bebê. Cinco anos mais tarde, um tribunal informou Montenegro de que ela não era a filha biológica de Tetzlaff e sua mulher, diz ela.


“Eu ainda estava convencida de que tudo isso era mentira”, diz.


Em 2000, Montenegro ainda acreditava que sua missão era manter Tetzlaff fora da cadeia. Mas ela concordou em ceder uma amostra de DNA. Um juiz então deu-lhe notícias dolorosas: o teste confirmava que ela era filha biológica de Hilda e Roque Montenegro, que foram ativistas da resistência. Ela descobriu que ela e os pais haviam sido sequestrados quando ela tinha 13 dias de idade.


Num jantar num restaurante, Tetzlaff confessou para Montenegro e seu marido: ele havia liderado a operação na qual os Montenegro foram torturados e mortos, e a havia sequestrado em maio de 1976, quando ela tinha quatro meses de idade.


“Não aguento falar mais”, disse ela, engasgando com a memória daquele jantar.


Um tribunal condenou Tetzlaff em 2001 por se apropriar ilegalmente de Montenegro. Ele foi para a prisão, e Montenegro, ainda acreditando que as ações dele durante a ditadura eram justificáveis, visitou-o semanalmente até sua morte em 2003.


Lentamente, ela passou a conhecer a família de seus pais biológicos.


“Isso foi um processo; não é num momento ou num dia que você apaga tudo e começa de novo”, diz ela. “Você não é um computador que pode ser desligado e reiniciado.”


Ela decidiu então contar a seus três filhos que Tetzlaff não era o homem que eles achavam que era.


“Ele disse a eles que era um soldado destemido, e eu tive de dizer-lhes que o avô era um assassino”, diz ela.


Quando ela testemunhou no julgamento, usou seu nome original, Victoria, pela primeira vez. “Foi muito libertador”, disse ela.


Ela também diz que não odeia os Tetzlaff.


Mas “o amor não o sequestra, não o esconde, não o maltrata, não mente para você durante toda sua vida”, diz ela. “O amor é outra coisa.”


Charles Newbery contribuiu com a reportagem.


Tradução: Eloise De Vylder Alexei Barrionuevo
Buenos Aires (Argentina)

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