quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

"OPERAÇÃO MASSACRE" É ESTÍMULO À COMISSÃO DA VERDADE

"A ideia de que é possível construir paz sem justiça, perdão sem verdade, é cada vez menos aceita entre nós. É nítida a sensação de desconforto com os cadáveres ainda insepultos da ditadura militar, que não permitem que a página dessa nossa triste história seja virada." - Marcelo Semer

Doze pessoas são sequestradas na calada da noite pela polícia e submetidas a um fuzilamento sumário por ordem militar.


O ano é 1957 e o país é Argentina, nove meses após a chamada Revolução Libertadora, que depôs Juan Domingos Perón. O jornalista e escritor Rodolfo Walsh inicia um percurso sem volta quando recebe, casualmente, a informação de existência de um sobrevivente deste fuzilamento. Walsh passa, então, a usar falsa identidade, muda-se para o bairro dos acontecimentos, e provoca, a partir de suas reportagens investigativas, uma incômoda e, saberemos depois, inócua apuração judicial sobre a barbárie.


"Operação Massacre", o livro que resulta de suas reportagens, é um libelo em busca da verdade escrito como um romance policial. O livro não é apenas uma aula e tanto de jornalismo, mas também uma profissão de fé na coragem.


A mesma coragem que levou Walsh a escrever nos anos 70, uma carta aberta ao regime militar, denunciando atrocidades provocadas pela nova ditadura argentina. Este último escrito, no entanto, não virou romance nem matéria de jornal. Foi calado tal qual o autor. No dia seguinte, Walsh entrou para a longa lista de desaparecidos do regime militar que pretendeu denunciar.


Por todas as suas qualidades intrínsecas, "Operação Massacre", que antecipa o new journalism que faria o sucesso de Truman Capote ("A Sangue Frio") anos depois, deve ser lido com entusiasmo. É eletrizante como romance policial, é interessante como o making of de uma reportagem, é impactante como denúncia dos sistemas policial e judicial carcomidos pela submissão ao poder militar.


Para nós, que estamos na antevéspera da criação de uma Comissão da Verdade, seu relato é nada menos que indispensável.


O exercício do jornalista, na intrincada busca de fontes e na desconstrução minuciosa da história oficial, recheada de incongruências e obscuridades, é, em si mesmo, uma homenagem à verdade.


O detalhismo de Walsh, que chegou a buscar a grade de radialistas da noite dos fatos, para comprovar que o arrebatamento das vítimas se deu antes da lei marcial, descortinou uma a uma as ilegalidades praticadas.


A publicação das reportagens, e depois do livro, todavia, acabou servindo como única forma de reparação às vítimas esquecidas pelo Estado.


Lembrar das vítimas, lançando luz, ainda que tardiamente, às barbaridades que sofreram, é, aliás, um dos objetivos de comissões de verdade.


Por três décadas, temos convivido no Brasil com a opacidade forçada: documentos oficiais sob o manto do segredo, resistência militar ao mero conhecimento dos fatos, ausência de respostas e, em muitos casos, de reparação. Por fim, uma anistia mal interpretada impedindo julgamentos.


Mas a ocultação da realidade não legitima por si só o esquecimento.


A ideia de que é possível construir paz sem justiça, perdão sem verdade, é cada vez menos aceita entre nós. É nítida a sensação de desconforto com os cadáveres ainda insepultos da ditadura militar, que não permitem que a página dessa nossa triste história seja virada - como vem ocorrendo na Argentina.


Recente decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, à qual o Brasil optou espontaneamente por reconhecer, abriu caminho inclusive para o julgamento dos atos criminosos da ditadura, com base na jurisprudência internacional que refuta anistias em crimes contra a humanidade.


A Corte recomendou expressamente que os fatos sejam apurados sob jurisdição civil, não militar. Os leitores de "Operação Massacre" bem entenderão o motivo.


A edição recentemente lançada pela Companhia das Letras agrega prefácios, posfácios, introduções e epílogos escritos por Walsh, nos quais descreve detalhadamente a construção de sua reportagem e justifica, ao longo do tempo, a mobilidade de suas opções políticas. De um apoiador da Revolução Libertadora à militância peronista e, enfim, membro ativo do movimento montonero nos anos 70.


Pode ser que o escritor de romances policiais não tenha resistido à tentação de transformar-se ele mesmo em detetive na vida real. Mas ao fazê-lo, foi afetado pelo poder transformador da verdade e as nefastas consequências das inúmeras tentativas de ocultá-la.


Como o tribunal da OEA concluiu, ao fim do processo dos desaparecidos do Araguaia, nada mais pertencente à liberdade de expressão do que o acesso à verdade. Ele é irrenunciável, inalienável e imprescritível.


Ler "Operação Massacre" nos faz entender melhor porque reconstruir a verdade sobre o passado é um requisito obrigatório para seguir adiante.


Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente da Associação Juízes para a Democracia. Coordenador de "Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho" (LTr) e autor de "Crime Impossível" (Malheiros) e do romance "Certas Canções" (7 Letras). Responsável pelo Blog Sem Juízo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário