terça-feira, 25 de janeiro de 2011

40 ANOS DO VOO DA LIBERDADE

40 Anos do Voo da Liberdade

Escrito por Umberto Trigueiros  


http://www.rededemocratica.org/joomla/images/rede2/voo_da_liberdade.jpg/





Fazia um calor insuportável no Rio, naqueles dias de janeiro de 1971,40º à sombra.
 Lembro que no dia 13, fomos levados para a Base Aérea do Galeão, espremidos em 2 ou 3 camburões pequenos, desde o quartel do Batalhão de Guardas, no bairro de São


Cristóvão, onde estávamos recolhidos aguardando o desenlace das negociações do sequestro.

 Éramos: eu (Umberto), Antonio Rogério, Aluízio Palmar, Pedro Alves, Marcão, Ubiratan Vatutin, Irani Costa, Afonso, Afonso Celso Lana, Bretas, Julinho, Mara, Carmela, Dora e Conceição.

Fazia sol a pino e os caras pararam os camburões em algum pátio descampado da Base e deixaram a gente lá torrando  dentro daqueles verdadeiros fornos e de puro sadismo e sacanagem riam e  gritavam uns para os outros, "...olha aí cara, os rapazes  estão com calor, você esqueceu de ligar o ar, eles vão ficar  suadinhos...".

 Um outro dizia, "...deixa esses filhos da puta  esturricarem aí dentro, pode ser que algum deles vá logo para o  inferno...". A viagem ao inferno não era possível, pois já  estávamos nele, ou seja nos cárceres da ditadura, há algum  tempo. A temperatura dentro dos carros era altíssima, mal  conseguíamos respirar pelas poucas frestas de ventilação, os  miolos pareciam que iam estourar.

 Foi um horror!






Ficamos na Base durante todo o dia 13, onde já estavam muitos outros  companheiros vindos de outras prisões e de outros estados e lá nos  mantiveram o tempo todo algemados em duplas.

 Nos deram comida podre, tiraram mais impressões digitais, nos obrigaram a tirar fotos nus em diferentes posições.

 Alguns deles diziam que era para o futuro reconhecimento dos cadáveres... Perto da meia noite nos levaram para o embarque, nos agruparam do lado do avião, frente a um batalhão  de fotógrafos postados há uns 50 metros de distância, atrás de uma corda.

 Éramos 70, mais as filhas do Bruno e da Geny Piola, as


menininhas Tatiana, Kátia e Bruna. Os flashes espocavam e muitos de   nós levantamos os punhos, outros fizeram o V da vitória, enquanto  os caras da aeronáutica por trás davam socos nas costas de alguns companheiros.

Nosso voo da liberdade para o Chile decolou aos 2 minutos de 14 de janeiro. Durante o voo, íamos algemados e os policiais da  escolta nos provocavam. "...Olha aí malandro, se voltar vai virar  presunto, nome de rua...".

A tripulação da Varig, mesmo discreta, foi simpática e afável conosco e quando chegamos a Santiago um


comissário de bordo veio correndo me contar que havia uma faixa na sacada do aeroporto que dizia "Marighella Presente".






Foram 2 longos dias, cheios de tensão, de expectativa, de


esperança, todos os sentidos em atenção.

Talvez, alguns dos mais longos dias das nossas vidas. Tenho a certeza de que nenhum de nós jamais se esquecerá daqueles momentos.

Nas últimas horas da  madrugada do dia 14 chegamos ao Chile.

Depois de 38 dias de negociações muito difíceis, de risco extremo, mas com muita firmeza e equilíbrio por parte do Comandante Carlos Lamarca e dos companheiros da VPR que realizaram a operação de captura do embaixador suíço, aquela que seria a última grande ação armada


da guerrilha urbana brasileira terminava vitoriosa.

Começava um novo tempo nas nossas vidas.






Fomos descendo do avião, já sem algemas (os policiais brasileiros da escolta foram impedidos de desembarcar), nos abraçando emocionados, rindo, chorando, cantando a Internacional, acenando para os companheiros brasileiros e chilenos que faziam uma carinhosa manifestação para nos recepcionar.






Um general de Carabineros nos reuniu no saguão do aeroporto e fez uma  preleção sobre tudo que estávamos proibidos de fazer no país.


Logo em seguida, funcionários do governo da UP e companheiros dos vários partidos da coalizão nos disseram ali mesmo para não  levar a sério nada do discurso do tal general.

Era o Chile de  Salvador Allende que íamos viver e conhecer tão intensamente.






Amanhecia o dia 14 de janeiro de 1971 quando saímos do aeroporto de Pudahuel em ônibus, escoltados por Carabineros.

Amanhecia também aquele novo tempo das nossas vidas e amanhecia o Chile da Unidade  Popular, da imensa liberdade, das grandes mobilizações populares, da  luta de classes ao vivo e a cores saltando diante dos nossos olhos todos os dias.

Pelas ruas de Santiago, a caminho do Parque Cousiño onde  ficaríamos alojados, os operários que trabalhavam nas obras do  Metrô acenavam para a gente, outros aplaudiam, alguns levantavam os punhos cerrados.

Imagens que ficariam para sempre na memória, fotografias de um tempo.






Aquele dia parecia infindo, ninguém conseguia pregar um olho, foi um  dia enorme, cheio de encontros, de descobertas, de luz.

 Estávamos bêbados de liberdade e ao mesmo tempo ainda marcados pela sombra da prisão, pelas tristes notícias de mais companheiros covardemente assassinados pelos cães da ditadura.

 Na nossa primeira refeição no Hogar Pedro Aguirre Cerda a maioria deixou os garfos e facas sobre a mesa e comeu de colher, como fazíamos na prisão.

Quando íamos para os quartos de alojamento, alguns cometiam o ato falho de dizer


"...vou para a cela...".

 Na nossa primeira saída, um grupo se  perdeu na cidade e voltou para o Hogar de carona num camburão dos


Carabineros, motivo de gozação geral. Lembro da imensa solidariedade  e carinho com que fomos recebidos pelos companheiros chilenos e  também por estudantes, intelectuais, artistas, operários, pessoas  do povo enfim que iam nos visitar, que fizeram coletas para nos arranjar


algum dinheiro e roupas, que nos queriam levar para suas casas.






Nas semanas e meses seguintes, pouco a pouco fomos nos dispersando,  construindo nossas opções de militância, de vida.






Viveríamos intensamente aquele processo chileno e também nossos  vínculos com a luta no Brasil. Nos encharcaríamos com o  aprendizado daquela magistral aula de história e de política "em carne viva".

Paixões, alegrias, nostalgias, saudade,  amores, amizade, solidariedade, companheirismo, tudo junto, ao mesmo
tempo.






Muitos de nós estivemos no Chile até o fim, vivendo e


testemunhando os horrores do golpe de 11 de setembro de 1973.

Em muitos  casos, mais uma vez, escapando por pouco, por muito pouco.






Outros companheiros, por diferentes razões de militância e  pessoais foram viver em outros países. Alguns trataram de organizar  suas voltas clandestinas ao Brasil, na esperança de continuar a luta  armada. Uns poucos conseguiram manter-se, mas infelizmente, nessa


empreitada de luta, vários companheiros foram assassinados.

Honro as  suas memórias e me orgulho de termos compartido aqueles momentos  tão significativos das nossas vidas.






Foi o tempo que nos tocou viver.

 Era um tempo de guerra, mas também de uma enorme esperança.






Na passagem dos 40 anos da nossa libertação, acho que deveríamos  dedicar a memória desse encontro fraterno, em primeiro lugar aos  companheiros do nosso grupo chacinados pelas ditaduras brasileira e  chilena, como também aqueles que marcados por sequelas e feridas


psicológicas insuportáveis não conseguiram continuar suas vidas


: Daniel José de Carvalho, Edmur Péricles Camargo, João BatistaRita, Joel José de Carvalho, Wânio José de Matos, Tito de Alencar Lima, , Maria Auxiliadora Lara Barcelos, Gustavo Buarque  Schiller.

Em segundo lugar, com saudade, a todos os companheiros daquela  viagem para a liberdade de 14 de janeiro de 1971, que já nos  deixaram. Com eterna gratidão e reconhecimento ao Comandante Carlos  Lamarca e aos combatentes da VPR que realizaram aquela ação


revolucionária audaz e vitoriosa. E também a todos os brasileiros  da nossa geração (e aqui não falo em idade, que pode ter ido dos  12 aos 80) que não se acovardaram, que foram capazes de enfrentar  aqueles duros e difíceis tempos, quando dizer não poderia  significar a morte, "...quando falar em árvores era quase um  crime...".






Enfim, a todos os que OUSARAM LUTAR...!

Nenhum comentário:

Postar um comentário