AS MORTES E A RESSUREIÇÃO DO CAMARADA JONAS
Sérgio Sá Leitão
O operário comunista Virgílio Gomes da Silva foi assassinado duas vezes. Na primeira, tomaram-lhe a vida; na Segunda, a reputação. Entre as duas há um intervalo de 27 anos e alguns meses. Uma aconteceu no Paraíso, em São Paulo, em 29 de setembro de 1969, obra coletiva de ver...dugos da Operação Bandeirantes (Oban). Sabe-se o nome do líder dos algozes: Benome de Arruda Albernaz, capitão do Exército. A outra é recente. Ocorreu em maio de 1997, com o lançamento, em cinemas de várias capitais brasileiras, do filme “O que é isso, companheiro?”, inspirado no best-seller de Fernando Gabeira. Os algozes? Bruno Barreto, diretor, e Leopoldo Serran, roteirista. Esta no entanto, acabou por gerar, paradoxalmente, a “ressurreição” de Virgílio. A primeira morte “Virgílio foi tratado de forma injusta e desrespeitosa: ninguém consegue imaginar como aquele boçal do filme poderia ser o comandante do seqüestro” (Cidadania Benjamin) Faltam poucas peças ao quebra-cabeças do assassinato “real”. Em 1969, com 36 anos, Virgílio Gomes da Silva atendia pelo epíteto “Jonas” e militava nas fileiras da Aliança Libertadora Nacional (ALN), organização de esquerda liderada por Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira – ambos, como ele, dissidentes do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em 4 de setembro, a ALN, à época protagonista da oposição armada à ditadura militar, e a Dissidência do PCB (DI), grupo que viria a ser batizado, durante a ação, de “MR-8”, perpetraram o que o historiador Jacob Gorender, em “Combate nas trevas” (Ática), qualifica de “golpe de mestre”: o seqüestro do embaixador dos EUA no Brasil, Charles Burke Ellbrick. Bem-sucedida, a ação da ALN e da DI terminou em 7 de setembro, “Dia da Pátria”, com a libertação de 15 presos políticos, oficialmente banidos do país e remetidos à Cidade do México, e sua contrapartida, a libertação de Ellbrick, enquanto Fluminense e Cruzeiro digladiavam-se no Maracanã. Humilhado, o governo militar desencadeou em seguida uma operação de caça aos militantes das duas organizações. Virgílio Gomes da Silva, comandante do seqüestro, foi preso (sem registro formal) em 29 de setembro, no apartamento 23 do edifício 312 da avenida Duque de Caxias (o “Pai do Exército”), em São Paulo. Levado à “casa dos horrores”, como era conhecida a sede da Oban no Paraíso, não foi apresentado às celas – a tortura começou imediatamente. “Se eu não soubesse quem ele era de fato, teria ido do cinema direto para um cartório e pediria para que retirassem do meu nome o sobrenome do meu pai” (Gregório Gomes da Silva) A determinação e a força física do es-boxeador Virgílio Gomes da Silva transtornaram os torturadores. Submetido ao pau-de-arara, disse apenas seu nome; no intervalo de um afogamento, guardou água na boca, a despeito da falta de ar, para depois cuspi-la sobre um dos inquisidores. Segundo Francisco Gomes da Silva, seu irmão, preso no dia 28 de setembro na mesma “casa dos horrores”, em entrevista ao repórter Luiz Maklouf Carvalho, do “Jornal da Tarde”, “Virgílio chamava os caras de filhos da puta, torturadores, e cuspia no rosto deles”. Chegou mesmo a agredir um torturador com os pés, empurrando-o por dois lances de escada. Francisco afirma que este torturador morreu. Malklouf não encontrou outra fonte para confirmar ou desmentir a informação. Virgílio Gomes da Silva não sobreviveu à primeira noite de prisão. A agressão ao torturador foi a gota d‘água. O implacável time do capitão Albernaz espancou-o até a morte. Paulo de Tarso Venceslau, militante da ALN que também participou do seqüestro de Ellbrick, contou a Maklout ter visto restos de massa encefálica e sangue, que seriam de Virgílio, em uma sala da Oban. Oficialmente, porém, ele “morreu (...) ao reagir à bala quando de sua prisão em um aparelho”, para a Marinha. Ou “foi encontrado em local baldio um cadáver, identificado tempos depois (...) como sendo de Virgílio Gomes da Silva. (...) Informamos que a (...) (morte) foi em conseqüência de traumatismo craniano encefálico”, nas palavras de um relatório do Dops de São Paulo. A Segunda morte “Quem conhecia a história do Jonas/Virgílio? O filme foi feito para celebrar Paulo/Gabeira, Mas os artigos fizeram a história do Jonas/Virgílio emergir “(Daniel Aarão Reis) O assassinato “moral”, por sua vez, está em cartaz, agora em liquidação: R$ 4,00 por ingresso. O filme “O que é isso, companheiro?” exibe, segundo o treiler, uma suposta “história verdadeira” do seqüestro de Ellbrick, desde o planejamento à prisão dos artífices. À imagem e semelhança do Virgílio Gomes da Silva “real”, o comandante do seqüestro no filme atende por “Jonas”, é militante da ALN em São Paulo, treinou em Cuba e revela experiência em ações de guerrilha urbana. No início da fita, informações históricas transportam o espectador ao tempo “real” (1969), ao espaço “real” (Rio) e ao contexto político “real” (ditadura militar) em que a trama acontece. O embaixador seqüestrado chama-se Ellbrick e as datas são as mesmas do seqüestro “real”. Não há razão, assim, para que se duvide que o “Jonas” do filme é uma representação, assinada por Barreto e Serran, do Virgílio Gomes da Silva “real”. E como aparece esta representação? Em contraponto ao personagem de Gabeira, brindado com traços glorificadores, Virgílio foi apresentado às 300 mil pessoas que assistiram ao filme, na definição do historiador Daniel Aarão Reis, ex-dirigente da DI, “como uma pessoa truculenta, monolítica, um mau caráter”; ou, segundo Gregório Gomes da Silva, 29 anos, filho de Virgílio, “uma pessoa de inteligência nula, alucinada, quase um psicopata”; ou, ainda, para o jornalista Cidadania Benjamin, um dos seqüestradores de Ellbrick, “um completo boçal, sádico e truculento, que por pouco não tortura o embaixador”. O “Jonas” de “O que é isso, companheiro?” coleciona frases e atitudes que dificilmente o qualificariam para o comando de qualquer atividade, especialmente de seqüestro. Sempre nervoso, chega a ameaçar Ellbrick com sua arma durante um “interrogatório”. Refere-se aos comandados como “filhinhos-de-papai” e diz que vai matar quem descumprir suas ordens. Chama de “vaca” a militante fictícia interpretada pôr Cláudia Abreu. Altera na surdina os turnos de vigilância para que seja o sensível e o culto Gabeira, codinome “Paulo”, seu “rival”, o carrasco do embaixador, na hipótese de o governo rejeitar as exigências da ALN e da DI. Quando “Paulo” assume o posto, “Jonas” recomenda: “(...) Meta-lhe duas balas (...) sem dó nem piedade”. “Os personagens mais elaborados são os torturadores. Os outros são muito fracos. Há formas de tratar a história sem deturpá-la, mas mas o filme é desonesto” (Vera Sílvia Magalhães) como Daniel e Cidadania, a viúva de Virgílio, Ilda Martins da Silva, 66 anos, não o reconheceu no “Jonas” do filme. “O nome e os fatos são os mesmos. Mas o meu marido, Virgílio Gomes da Silva, chamado entre os companheiros de Jonas, não era nada do que o filme mostra, uma pessoa sem caráter e sem coração. Ele era humanos, decidido e inteligente. Respeitava os companheiros. Não era a escória, o assassino frio do filme. Ele era trabalhador, honesto e sincero. Era um bom marido e um bom pai. Desejava o melhor para seus filhos e para o povo brasileiro”. Indignados, Ilda e seus quatro filhos com Virgílio (Gregório, 29 anos, Vlademir, 36, Virgílio, 34, e Isabel, 28) decidiram processar os produtores de “O que é isso, companheiro?”, Luiz Carlos e Luci Barreto. Ilda Martins da Silva também conheceu “a casa dos horrores”. Presa no dia seguinte à morte de Virgílio, foi interrogada pelo time do capitão Albernaz e torturada com choques elétricos. “Queriam saber se o Virgílio era terrorista, se havia sido treinado em Cuba, quem freqüentava a nossa casa. Nunca me falaram que ele tinha morrido; diziam que havia fugido e que estaria, provavelmente, em Cuba”. Em 1972, A ALN, mesmo em seus estertores, deu um jeito de enviá-la, com os filhos, ao Chile; um ano depois, mudaram-se para Cuba. Hoje, Ilda procura pistas da cova onde Virgílio, que ainda figura na lista de “desaparecidos”, foi sepultado. “Quero enterrá-lo num lugar em que a gente possa, pelo menos, colocar uma flor bem bonita para ele”, conta. A Ressurreição Se o assassinato “real” encerrou a militância de Virgílio e levou-o., provisoriamente, à beira do anonimato, o assassinato “moral” teve, na verdade, efeito oposto. “O tiro do filme saiu pela culatra”, explica Daniel. “O roteiro cria um príncipe e um sapo. De um lado, o boçal Jonas. De outro, o genial Paulo. Aos poucos, porém, os refletores deixam Paulo e iluminam o desconhecido Jonas. As pessoas se perguntam... Quem é este cara? Saem artigos, como os de Elio Gaspari (‘O Globo’ e ‘Folha de São Paulo’), Franklin Martins ( ‘O Globo’) e César Benjamin (‘Jornal do Brasil’), que resgatam Virgílio. Muita gente, assim, passa a conhecer Virgílio e a história verdadeira de um homem que lutou e morreu como um bravo. No fim, o sapo vira príncipe e o príncipe, sapo”. Eis aqui um mérito involuntário de “O que é isso, companheiro?”. Embora “desvirtue a imagem” de Virgílio, ao ponto de transformar-se em uma “ofensa à vida e à morte” dele, como afirma Gregório, ao menos desperta a indignação dos que o conheceram e atrai a atenção dos espectadores para a história dos perdedores – a história de Virgílio Gomes da Silva e a história da oposição à ditadura militar. Além dos diversos artigos e entrevistas publicadas em jornais, registram-se um ato de desagravo a Virgílio, em São Paulo, e o lançamento de dois livros com visões divergentes da exposta no filme: “O seqüestro dia-a-dia”, de Alberto Berquó (Nova Fronteira) e “Versões e Ficções – O seqüestro da história”, de vários autores (Fundação Perseu Abramo). “O filme terá o destino de toda mercadoria ruim, porém bem-lançada: badalação, sucesso e esquecimento, caminho inverso ao das obras de arte” (César Benjamim) Foram necessários dois crimes para que Virgílio Gomes da Silva conquistasse um merecido papel de protagonista na história do Brasil. Tinha méritos, claro. Esbarrou na eliminação física e no aviltamento moral. Superou-os, tão fortes eram as suas credenciais. A despeito dos verdugos de ontem e de hoje, transcendeu a lista de “desaparecidos” e os relatórios forjados. Recuperou forma, substância e passado. Ainda não teve direito a uma certidão de óbito. Não mereceu uma lápide. Não está, fisicamente, entre nós. Muitos, porém, sabem agora quem era, o que fez, por que fez, como o impediram de continuar a fazer e como distorceram, no cinema, quem era e o que fez. Tomaram-lhe a vida; tomaram-lhe a reputação. Mas a história, por linhas tortas, fez-lhe justiça. (texto de Sérgio Sá Leitão realizado a partir de pesquisas e checagens do autor, artigos de Franklin Martins, Elio Gaspari e César Benjamim, reportagens de Luiz Maklouf Carvalho e entrevistas realizadas por membros do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ com Daniel Aarão Reis, Cidadania Benjamin, Ilda Martins da Silva, Gregório Gomes da Silva e Vera Sílvia de Araújo Magalhães). PERFIL Nome: Virgílio Gomes da Silva Codinome: Jonas Data de nascimento: 15/08/1933 Local: Santa Cruz, Rio Grande do Norte Data da morte: 29/09/1969 Local: São Paulo Profissão: Operário da indústria farmacêutica Mulher: Ilda Martins da Silva Data do casamento: 21/05/1960 Filhos: Vlademir Gomes da Silva, 36, casado, um filho; Virgílio Gomes da Silva, 34, uma filha; Gregório Gomes da Silva, 29, casado, duas filhas; Isabel Maria Gomes da Silva, 28, casada, uma filha Militância política: Partido Comunista do Brasil (depois Partido Comunista Brasileiro) a partir do início da década de 50 e aliança Libertadora Nacional (Segunda metade da década de 60) Militância sindical: Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas e Farmacêuticas de São Paulo preparação militar: Curso em Cuba Missão principal: Comando do seqüestro do embaixador dos EUA (1969) Prisões: Duas (na primeira, em 1964, o saldo foi uma clavícula deslocada; na Segunda, em 1969, a morte) Esporte: Boxe (disputou campeonatos amadores na categoria “galo”) Ano inesquecível: 1954, quando finalmente conseguiu levar a mãe, (Isabel Marinho de Carvalho) e os irmãos, de avião, do Rio Grande do Norte para São Paulo, onde vivia e trabalhava desde 1951. Ídolo esportivo: Éder Jofre (batizou de “Galo de Ouro” um bar que possuiu). Crítica do filme “O filme de Bruno Barreto bate de frente com a luta pelo resgate da história recente do país. Fala dos eventos históricos mas confere a eles uma versão conciliadora. Pretende nivelar torturadores e torturados. Assim, justifica os crimes cometidos pela ditadura militar contra os brasileiros que não se subjugaram à ordem imposta pelo golpe. Tal visão da história, se aplicada hoje, justificaria a tortura e a morte dos brasileiros excluídos, como os sem-terra”. Gregório Gomes da Silva, filho de Virgílio
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