Inspirado em fatos reais, ocorridos na Argélia em 1996, "Homens e Deuses", do diretor francês Xavier Beauvois ("O Pequeno Tenente"), sustenta a tensão da crônica de uma morte anunciada. Mas o cineasta empenha-se de tal maneira em aprofundar um perfil de seus personagens, monges católicos sitiados pelo fundamentalismo islâmico, que seu filme torna-se um libelo pela tolerância.
Vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes em 2010, "Homens e Deuses" detalha a vida despojada destes religiosos que, liderados pelo prior Christian de Chergé (Lambert Wilson, de "Um Plano Brilhante"), dedicam seu tempo a orações, cânticos e trabalho agrícola, numa atmosfera de silêncio e contemplação.
A atitude ascética não os impede de atender a necessidades mais urgentes da empobrecida população local, que faz diariamente enormes filas para procurar o irmão Luc (Michael Lonsdale, de "A Questão Humana"), único médico e fornecedor de remédios num raio de centenas de quilômetros na cordilheira do Atlas.
Com inteligência sutil, o filme permite que se reflita sobre essa benevolência do Ocidente diante das populações do antes chamado Terceiro Mundo - que a França, entre outros países, colonizou, instituindo um modelo de dependência e pobreza em diversas dessas ex-colônias, inclusive a Argélia. Quem verbaliza este sentimento, não por acaso, é o prefeito local, que não esconde a rejeição aos franceses, monges ou não.
Essa atitude, que encobre a cegueira do preconceito, torna-se mais incisiva na figura do coronel (Abdellah Chakiri), cujos excessos na captura dos guerrilheiros islâmicos que lutam contra o governo (uma ditadura militar islâmica) rendem críticas do monge Christian - que, por isso, é visto como simpatizante dos terroristas pelo militar.
Evitando o caminho de uma santificação maniqueísta dos religiosos, "Homens e Deuses" individualiza suas posições, tantas vezes divergentes, diante da escolha de ficar ou partir. Ressalta-se, aí, as dúvidas e o próprio medo do irmão Christophe (Olivier Rabourdin), o que se manifesta com mais veemência no sentido de abandonar seu posto. O que, afinal, opta por não fazer.
Esclarecendo esta persistência em permanecer, apesar de todos os perigos que certamente conheciam, tornando-os de algum modo suspeitos diante de todos os lados envolvidos no conflito, que estão impregnados de tudo menos de qualquer racionalidade, o filme resgata sua voz - recorrendo a cartas escritas pelos monges para recuperar os argumentos e crenças que os levaram a ficar no mosteiro até o fim, quando foram capturados e mortos pela facção Jamaat Islamyya.
Se há uma pequena falha no filme, é a de não frisar devidamente as dúvidas quanto à autoria da morte dos religiosos - que é mencionada nos letreiros finais, mas não menciona diretamente as suspeitas de que os próprios serviços secretos do governo argelino da época pudessem ter tido alguma participação no massacre. Que, por todas as lacunas da investigação, permanece sem total esclarecimento até hoje.
(Por Neusa Barbosa, do Cineweb)
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