sexta-feira, 4 de janeiro de 2013


LATUFF: “FECHEM A BÍBLIA. PRECISAMOS LER LIVROS SOBRE POLÍTICA”!

Os dias tinham sido muito quentes na Porto Alegre do Fórum Social Mundial Palestina Livre, mas a madrugada entre sexta-feira e sábado foi lavada pela chuva e o calor dava uma trégua. Eu corria para arrumar as malas, tomar banho e guardar tudo – a pressa de quem sabe que tem sair do quarto. Pressa desnecessária: um albergue é bem menos caxias do que um hotel, além de bem mais barato. Lancei o keffiyeh (lenço árabe) à cabeça para não me molhar tanto e tomei um táxi rumo ao campus central da UFRGS, onde seria a roda de bate-papo com Carlos Latuff.
O salão não estava cheio e o painel anterior ainda não tinha terminado quando o relógio avisava que já eram 12h15min. Dois ativistas, um tunisiano e um marroquino, aproximaram-se de mim para me perguntar se eu sabia a senha da internet. Dada a resposta positiva, quedaram-se a conversar. Uma estadunidense se juntou a nós e, por fim, uma belga refestelou-se de alegria ao escutar a língua francesa (“vou ficar por aqui”). Pedi licença e fui achar um lugar na roda de cadeiras que fora feita para a conversa com Latuff. Assim como em muitos espaços do Fórum, acabei servindo de tradutor para quem não falava português – dessa vez para um ativista escocês.
Carlos Latuff é um chargista brasileiro famoso por sua atuação pró-Palestina. Muitos de seus desenhos já rodaram o mundo a ilustrar as lutas de vários povos. A identidade visual do Fórum era, ela mesma, de sua autoria. Latuff nunca cobra os desenhos que faz sobre a Palestina; são todos copyleft, podem ser reproduzidos e usados livremente.
Ele começou sua fala se apresentando e se dizendo insatisfeito com o Fórum. Segundo Latuff, a ausência de pessoas da Faixa de Gaza naqueles dias só mostrava que a organização do evento estava ao lado de Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Nacional Palestina. Abbas é também o líder do Fatah, o grupo político predominante na Cisjordânia, que não se acerta com o Hamas, grupo que governa Gaza. Esse posicionamento lhe renderia uma discussão com uma membra da organização que, ao final da conversa, tentaria explicar a tal ausência a Latuff como sendo por própria escolha do Hamas – o que não o convenceu.
O resto da conversa, antes das perguntas, dividiu-se sobre dois pontos. O primeiro dizia respeito à mídia. Para Latuff, “temos que construir uma alternativa para dar voz aos palestinos”. Não podemos esperar que a mídia hegemônica, sionista, milagrosamente ouça os reclames dos movimentos sociais – isso não lhes interessa. “Não se pode contar com a imprensa. Precisamos encontrar espaços alternativos que disputem espaços”.
O segundo ponto foi sobre a crítica que seu trabalho seguidamente recebe de ser anti-semita, principalmente por frequentemente usar a bandeira de Israel nas suas charges. Para ele, o uso da Estrela de Davi e de outros símbolos religiosos é uma tática do Estado de Israel para desvirtuar a discussão. Parece que tudo que se fale sobre o país está, no final das contas, criticando o judaísmo. Latuff mencionou ainda que, na bandeira, podemos ver bem clara uma segunda intenção: cada faixa azul representa um rio, Nilo e Eufrates, retratando a extensão dos planos expansionistas de Israel, uma área que perpassa partes do Egito, a Palestina, a Jordânia, a Síria e o Iraque.
 
No entanto, Latuff disse que, mesmo com a constante tentativa de desqualificar as críticas ao Estado de Israel valendo-se do termo anti-semita, “temos que ter coragem de dizer isso. Israel representa Israel, representa o governo de Israel. Não existe nenhum país que represente todo o seu povo”. Logo, a crítica à atuação do Estado de Israel não tem um fundo religioso, mas político – não se pode confundir as duas coisas. O que acontece na Palestina é puro neo-colonialismo – o saque de terras, o extermínio de toda uma população, sua cultura e sua história. Latuff comentou que muitos sionistas usam a Bíblia para explicar a barbárie israelense. Sua resposta: “fechem a Bíblia. Precisamos ler livros sobre política”!
Em referência ao termo ‘anti-semita’, que é usado como salvo-conduto pelos sionistas para se afastarem de quaisquer críticas a Israel, Latuff explicou que é um termo cunhado nos tempos do nazismo que foi reapropriado pelos sionistas europeus. Semitas são povos vindos do Oriente Médio, entre eles hebreus, samaritanos, babilônios, fenícios, árabes etc. Semitas não são, portanto, forçosamente judeus. Assim, o uso do termo se mostra extremamente tendencioso. Como disse o ativista egípcio-canadense Ehab Lotayef, num evento organizado pela SEDUFSM (Seção Sindical dos Docentes da Universidade Federal de Santa Maria): “como egípcio, eu sou semita. Então como é que eu vou ser anti-semita, contrário a mim mesmo?”
A conversa com Latuff terminou com seu pedido por uma resistência unida. “O inimigo dos palestinos é o mesmo inimigo dos mapuches, dos curdos. O inimigo é o mesmo, ele só muda de língua, de rosto. Se o inimigo é um, a luta também deveria ser uma só”.
Depois da roda de bate-papo, era impossível chegar muito perto de Latuff. Fotos, autógrafos e comentários. Eu já havia marcado uma entrevista com ele para aquele horário, mas também parecia tê-lo feito uma menina que estava à espreita assim como eu. Fernanda Quêvedo, do grupo Fora do Eixo, também tinha marcado entrevista com Latuff. Quando eu finalmente consegui falar com ele, Fernanda interveio e me convidou para ir à Casa Fora do Eixo Porto Alegre, onde o entrevistariam. Fui convidado no que, mais tarde, revelou-se uma maneira de não esperar por que eu o entrevistasse primeiro. Sem problemas! Conseguimos deixar o prédio depois de muito tempo. Fernanda e eu entrevistamos Latuff ao vivo para o #posTV, um projeto audiovisual do Fora do Eixo. As duas partes da entrevista podem ser vistas abaixo. Caso os players não funcionem, é só acessar os links em seguida:

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