quarta-feira, 16 de janeiro de 2013


Fui para o exílio com sete filhos"




A vida da carioca Thereza Rabêlo, 70 anos, é marcada por um grande amor, sete filhos e três golpes militares. Casada com um jornalista, ela saiu do pa
ís durante a ditadura, levando muita coragem e sete crianças. Passou pelos golpes na Bolívia e no Chile. Viveu 16 anos longe do Brasil. Hoje Thereza mora com o marido em Belo Horizonte e relembra a sua saga no exílio



Thereza com os filhos em 1964, pouco antes de partir para o exílio

'Os golpes de Estado me perseguem. Por causa deles fui fincando raízes pelo mundo junto com meu marido e sete filhos. Passamos pelos golpes no Brasil, na Bolívia e no Chile. Vivemos 16 anos no exílio. Em cada mudança a gente deixava tudo para trás. Vestíamos roupas doadas em refúgios de exilados e tínhamos que refazer a vida num mundo desconhecido, com outra cultura. Se alguma coisa aprendemos no exílio foi aproveitar o que a vida oferece de bom e deixar o resto pelo caminho. Mas é claro que, esquecer o que aconteceu, a gente nunca esquece.

Venho de uma família de militares, tive uma educação quase reacionária. Nasci e fui criada no Rio de Janeiro. Tenho duas irmãs, a gente freqüentava as festas do Clube Militar. Um dia minha mãe leu no jornal a notícia sobre um curso de preparação para o concurso dos Correios, que eu ia fazer. O curso funcionava na sede do antigo Partido Socialista Brasileiro, o professor de geografia era bonito e falante. Depois de uma aula entrei no elevador ao lado dele e limpei o pó de giz no seu ombro. Dias depois começamos a namorar. A notícia correu: 'Thereza está namorando um comunista'. Meu namorado, José Maria Rabêlo, era membro do Partido Socialista. Mas, com jeitinho, convencemos a família de que isso não seria um problema.

Namoramos quase dois anos e nos casamos em março de 1952. A igreja ficou dividida: de um lado, os militares com fardas de gala; do outro, os amigos do Zé Maria. Mas na festa, na casa dos meus pais, teve até clima de confraternização. Uma de minhas amigas saiu dizendo: 'Esses comunistas amigos da Thereza são até simpáticos'.

Já tínhamos dois filhos, Álvaro e Pedro, quando deixamos o Rio para morar em Belo Horizonte. Zé Maria é mineiro, tinha trabalhado em alguns jornais de lá. Brinco que a cidade foi meu primeiro exílio. Estranhei o conservadorismo, o jeito fechado das pessoas, tão diferente do Rio. Um dia olhei as montanhas e senti um aperto no coração. Tive essa sensação outras vezes no exílio, parecia uma premonição. Era o início de uma vida intensa ao lado do Zé Maria. Ele dirigia o jornal 'Binômio', considerado um dos precursores da imprensa alternativa no Brasil. Com humor e coragem o jornal agitava Belo Horizonte com reportagens que enfrentavam os poderosos.

Nesses anos em Belo Horizonte, tivemos mais cinco filhos: Mônica, Patrícia, Hélio, Fernando e Ricardo. Eu e Zé Maria adoramos crianças. Não era um plano ter tantas, mas elas foram bem-vindas. Eu trabalhava na tesouraria dos Correios, cuidava da meninada e vivia a tensão que cercava o 'Binômio'. Às vésperas do golpe de 64, o jornal vivia recebendo ameaças. Em meados de fevereiro, um mês antes do golpe (em 31 de março), ouvi pelo rádio a notícia de uma manifestação nas ruas. O locutor anunciou a presença de vários líderes da esquerda, entre eles 'o diretor do 'Binômio', José Maria Rabêlo'. Em seguida ouvi uma explosão, a transmissão foi interrompida. Cerca de 200 ficaram feridos. Meu marido não sofreu nada, mas fiquei desesperada. Eu me imaginava sozinha com os meninos. Na época, o mais velho tinha 10 anos e o caçula engatinhava.

A sede do 'Binômio' foi depredada, Zé Maria teve de se esconder. Pe- guei meus filhos e fui para o Rio num carro dirigido por um motorista do jornal. Sem notícias do meu marido, espalhei as crianças em casas de parentes. Um dia recebi um aviso de que Zé Maria estava na embaixada da Bolívia esperando o salvo-conduto para poder viajar para lá. Eu ia diariamente à embaixada e levava alguns de nossos filhos. No dia 3 de julho de 1964, ele partiu para o exílio no mesmo grupo do José Serra [ex-ministro da Saúde, no governo Fernando Henrique], que era presidente da União Nacional dos Estudantes. O aeroporto Santos Dumont estava cercado por militares. Eu e os meninos tivemos pouco tempo para nos despedir. A imagem que ficou foi a de uma foto belíssima dos filhos abraçando os pais, publicada no 'Jornal do Brasil'.

Com medo de perder meu emprego, voltei para Belo Horizonte com a meninada. Meu salário não dava para sustentar a família. Fui vendendo tudo na bacia das almas: as máquinas do jornal, as coisas da casa, um terreno.

A sorte é que tive inúmeras manifestações de solidariedade. Minha mãe deixou o Rio para morar comigo, a família do Zé Maria me apoiava. Quando as crianças perguntavam pelo pai, eu dizia que ele voltaria logo, não deixava a peteca cair. Um dia um amigo do Hélio disse a ele: 'Seu pai está exilado porque roubou a carteira de um general'. Hélio respondeu: 'Meu pai está exilado porque é comunista'. Eles sempre tiveram muito orgulho do Zé Maria. No primeiro Dia dos Pais depois do golpe, a revista 'O Cruzeiro' publicou uma reportagem com o título 'Nossa vida sem papai', mostrando as famílias dos exilados. Lá estava a minha foto cercada pelos filhos.

Zé Maria começou a trabalhar em um jornal em La Paz. Ele me pediu para ir encontrá-lo, para a gente alugar uma casa e só depois levar as crianças. Comemorei com elas em um parque, com sanduíches e Coca-Cola. Deixei os sete com minha mãe e viajei. A Bolívia vivia um momento complicado, com greves e ameaça de golpe militar. Foi só a gente começar a procurar a casa que começaram os disparos nas ruas. Um golpe derrubou o presidente Victor Paz Estenssoro e uma junta militar assumiu o poder. O sonho de reunir a família teve de ser adiado. Zé Maria tinha que ir embora porque o jornal em que trabalhava apoiava o presidente deposto. Fugiu para o Chile, país que acolheu muitos brasileiros. Voltei para Belo Horizonte e passei quase um ano sem saber o que seria de nós, até que recebi um recado do Zé Maria pedindo para eu preparar a mudança para Santiago.


http://revistamarieclaire.globo.com/Marieclaire/0,6993,EML747847-1749,00.html

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