quarta-feira, 27 de junho de 2012

Justiça para Luiz Eduardo Merlino
30/04/2008 Michael Löwy
Luiz Eduardo Merlino, jovem jornalista brasileiro, militante da Quarta International, morreu sob tortura, com a idade de 23 anos, em julho de 1971. Sua ex-companheira, Angela Mendes de Almeida, e sua irmã, Regina Merlino Dias de Almeida, decidiram, apesar da anistia oficial que os militares se outorgaram há mais de vinte anos, levar à justiça o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, acusado por várias testemunhas de ser o principal responsável por este crime. Felizmente o juiz, Carlos Abrão, acolheu o pedido de abertura da ação: a tortura é, segundo a lei brasileira e os tratados internacionais assinados pelo Brasil, imprescriptivel. O processo deverá começar dentro de algumas semanas. As duas autoras da ação não pedem a condenação penal do oficial, nem indenizações, mais simplesmente a verdade: que a justiça declare o coronel Ustra responsável pela tortura e morte de Merlino.
Este sinistro personagem era o chefe do Departamento de Operações de Informação (DOI-CODI) da ditadura militar em São Paulo. Sob este eufemismo escondia-se uma oficina de torturas, de que foram vítimas de tortura - entre 1970 et 1973, período de comando de Ustra – cerca de quinhentos presos, dentre os quais morreram mais de quarenta, entre eles nosso jovem camarada. Segundo a versão oficial, atestada por dois «médicos legistas» a serviço dos militares, Merlino teria se «suicidado», jogando-se debaixo das rodas de um carro: explicação ridícula, freqüentemente utilizada pela ditadura para cobrir seus crimes. Na realidade vários ex-presos – entre eles o escultor Guido Rocha, que compartilhou a cela com ele – testemunharam ter visto Merlino agonizando depois de ter sido submetido a 24 horas de tortura ininterrupta, sem entregar nenhuma informação a seus algozes. Submetido a eletrochoques e ao suplício do «pau de arara», isto é, pendurado com os pés e as mãos amarradas, ele já estava em um estado grave, semi-paralisado, quando os torturadores o jogaram no cimento do chão da cela. Faleceu dois dias depois.
Como salienta Angela, sua companheira, "o fim da impunidade começa com a memória e o restabelecimento da verdade. A tortura na ditadura era uma política do Estado brasileiro, mas seus executores têm nome. O coronel Ustra, sendo o comandante do DOI-CODI, é responsável por isso. As torturas foram realizadas por ele e os seus subalternos, sob seu comando e com o seu conhecimento".
Este processo é importante. Se o coronel for declarado culpado, será a primeira vez que um responsável do aparelho repressivo da ditadura deverá prestar contas de uma morte sob tortura. Aliás, o mesmo coronel é objeto de outra ação judicial, promovida pela familia Teles - um casal, a irmã da esposa e dois filhos – torturados nos mesmos locais do DOI-CODI em 1972. O processo está em curso. Neste caso, como no de nosso companheiro Merlino, a condenação do coronel será uma vitória, certamente simbólica mas de claro teor politíco, da verdade e da justiça.
Luiz Eduardo Merlino, conhecido também sob o pseudônimo de «Nicolau», era um dos dirigentes do Partido Operário Comunista (POC), uma organização simpatizante da Quarta Internacional no Brasil, que havia decidido, a partir de 1969, participar da resistência armada contra a ditadura militar estabelecida no pais em 1964. Em 1970-71 ele veio a Paris, com sua companheira Angela, para estreitar laços com a Quarta Internacional, estudar a experiência organizacional de Liga Comunista e estabelecer contatos com organizações irmãs na América Latina, em particular na Argentina. Foi nesta época que tive a sorte de conhecê-lo.
Luiz Eduardo era um rapaz magro, de feições delicadas e agradáveis, com óculos e um pequeno bigode. Era generoso, calmo e decidido. Não se resignava a ficar no exílio e havia tomado a decisão de voltar o mais cedo possível para o Brasil, para tentar reorganizar o POC e inseri-lo no processo de resistência armada à ditadura. Tentei dissuadi-lo, mas sem sucesso. Lúcido, ele reconhecia a dificuldade e o risco da empresa. Certa vez perguntei-lhe como avaliava sua chance de "sair-se bem" na volta ao Brasil. Respondeu-me: "cinqüenta por cento" ...
A análise de conjuntura era certa ou não? Será que a tática era a mais apropriada?A estratégia era correta ou equivocada? Trinta e cinco anos depois estas questões perderam muito de seu interesse. O que sobra é a integridade de um indivíduo, sua decisão de arriscar a vida pela causa da liberdade, da democracia, da emancipação dos trabalhadores, do socialismo. Para o Luiz Eduardo Merlino, voltar ao Brasil era uma clara exigência moral e política, uma espécie de "imperativo categórico" que não aceitava recuos ou concessões.
Certas pessoas, que na época partilhavam da luta de "Nicolau", mas hoje se converteram ao social-liberalismo - prefiro não citar nomes - pretendem que o comportamento daqueles que no Brasil e na América Latina arriscaram e perderam sua vida na luta desigual contra as ditaduras do continente, eram movidos por um "espírito suicida". Nada mais absurdo. Luiz Eduardo amava a vida, amava sua companheira e não tinha a mínima vocação para o suicídio. O que o levou a tomar a decisão que tomou e lhe custou a vida, foi simplesmente um sentimento de dever, uma ética, um compromisso com os companheiros de luta.
A historia do futuro não se fará sem a memória de nossos amigos e companheiros martirizados.


Lembranças de Nicolau
Michael Löwy

Luiz Eduardo Merlino é destas pessoas que ficam para sempre gravadas na memória de quem as conheceu, por mais que passem os anos e as modas. Tive a chance de encontrá-lo em Paris, durante os poucos meses em que permaneceu no exílio (1970-71), como militante da nossa corrente (a velha Quarta), mas sobretudo como amigo, como "camarada", no amplo e fraterno sentido desta palavra.
Luiz Eduardo tinha escolhido como codinome "Nicolau". Certa vez me explicou que este era o nome que os primeiros comunistas brasileiros utilizavam para tentar traduzir "Vladimir", o prenome de Lenin, ao português. "Nicolau" era inseparável de sua companheira de amor e de lutas, Angela, codinome "Tais". Os dois haviam formado no POC uma corrente "quartista", a "Tendência Nicolau-Tais", que se designava, com auto-ironia, a "TNT". A escolha do pseudônimo não era casual: "Nicolau" era leninista confesso e convicto. Às vezes brincava, com humor e amizade, com minhas simpatias "luxemburguistas". A verdade é que nos entendíamos muito bem, partilhando aquela mistura de Trotsky com Che Guevara que era tão explosiva como a TNT.
Luiz Eduardo era um rapaz magro, de feições delicadas e agradáveis, sempre de óculos e bigode. Era generoso, calmo e decidido. Não se resignava a ficar no exílio e havia tomado a decisão de voltar o mais cedo possível ao Brasil, tentar reorganizar o POC e inseri-lo no processo de resistência armada à ditadura. Tentei dissuadi-lo, mas sem sucesso. Lúcido, ele reconhecia a dificuldade e o risco da empresa. Certa vez lhe perguntei como avaliava sua chance de "sair-se bem" da volta ao Brasil. "Cinqüenta por cento" me respondeu…
A análise de conjuntura era certa ou não? Será que a tática era a mais apropriada? A estratégia era correta ou equivocada? Trinta e cinco anos depois estas questões perderam muito de seu interesse. O que sobra é a integridade de um indivíduo, sua decisão de arriscar a vida pela causa da liberdade, da democracia, da emancipação dos trabalhadores, do socialismo. Para o Luiz Eduardo, voltar ao Brasil era uma alta exigência moral e política, uma espécie de "imperativo categórico" que não aceitava recuos ou concessões. Certas pessoas, que na época partilhavam da luta do "Nicolau", mas hoje se converteram ao social-liberalismo - prefiro não citar nomes - pretendem que o comportamento daqueles que no Brasil e na América Latina arriscaram e perderam sua vida na luta desigual contra as ditaduras do continente, eram movidos por um "espírito suicidário". Nada mais longe da verdade. Luiz Eduardo amava a vida, amava sua companheira, e não tinha a mínima vocação para o suicídio. O que o levou a tomar a decisão que tomou, e lhe custou a vida, foi simplesmente um sentimento de dever, uma ética, um compromisso com os companheiros de luta. É por isto que a memória dele continua tão viva e presente, não só no Brasil, mas também na França e em outros países em que se conheceu sua história.
Outro dia, mexendo em velhos jornais marxistas, dei com uma fotografia do Luiz Eduardo, com o título "morto em combate". O artigo que acompanhava a foto já envelheceu, não apresenta maior interesse. Mas o olhar do Luiz Eduardo não perdeu nem um pouco de sua força e de sua intensidade e me atingiu em pleno coração: não pude conter as lágrimas, era como se tudo se tivesse passado ontem.
A ditadura não deu uma chance ao Luiz Eduardo: preso logo depois de sua chegada, torturado, morto por não entregar informações. A herança que ele nos deixa é a de seguir lutando, para que nunca mais o Brasil conheça a opressão, a violência policial, a tortura.
Joe Hill, o dirigente sindicalista revolucionário norte-americano, autor de belas canções de luta, deixou esta mensagem a seus companheiros, pouco antes de ser fuzilado pelas autoridades em 1915: "don't mourn, organize" - não fiquem de luto, vão e organizem-se (os explorados e oprimidos). Acho que o "Nicolau" teria gostado desta mensagem…
Maio 2006






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