terça-feira, 19 de junho de 2012

A Guerrilha do Araguaia e o Arquivo Curió


Repórter do Estadão lança o livro “Mata!”, abre arquivos de Curió, desnuda papel do sargento João Santa Cruz, mostra como morreram Maurício Grabois e o goiano Divino Ferreira de Souza e critica os pesquisadores e jornalistas Taís Morais e Hugo Studart.
Por Renato Dias
Outubro de 1973: Norte de Goiás e Sul do Pará. Sob ataque da equipe do coronel Lício Maciel, na Guerrilha do Araguaia (1972-1975), o guerrilheiro Divino Ferreira de Souza, codinome Nunes, militante do Partido Comunista do Brasil, é ferido e morre depois na casa azul. Esses foram os últimos passos do desaparecido político goiano. É o que revela com exclusividade ao Jornal Opção o jornalista Leonencio Nossa.
“No ataque da equipe do coronel Lício Maciel em que morreu André Grabois, filho de Maurício, chefe da guerrilha, num sítio da mata, Nunes levou um tiro no quadril. Ele foi capturado e levado de helicóptero para a base da Casa Azul, em Marabá. Morreu em consequência dos ferimentos. Não deixou de sofrer tortura psicológica para falar o que sabia e o que não sabia.”

O autor de “Mata! — O Major Curió e as Guerrilhas do Ara­guaia” (Companhia das Letras, 496 páginas), já nas livrarias, o repórter do jornal “O Estado de S. Paulo” obteve acesso aos arquivos do tenente-coronel Sebastião “Curió” Moura (major na época dos combates), o exterminador da guerrilha. Mais: consultou múltiplas fontes disponíveis. Ele mostra como morreram Osvaldão e Maurício Grabois e relata a participação do sargento Santa Cruz.
A Guerrilha do Araguaia começou a ser preparada em 1966. Ela ocorreu no Norte de Goiás, atual Tocantins, e no Sul do Pará entre os anos de 1972 a 1975. Inspirada nas táticas e estratégias formuladas por Mao Tsé-tung, que liderou a revolução socialista na China, em 1949, foi dirigida pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) com o objetivo de “cercar” as cidades pelo campo.
De linhagem maoísta, o PCdoB deslocou para a região do Araguaia 69 guerrilheiros. Mais: 18 camponeses teriam sido incorporados ao movimento. O Exército calcula que o número de colaboradores populares da guerrilha teria sido de 30. O número de mortos pode chegar a 95. Dos três lados do conflito: PCdoB, camponeses e Forças Armadas.
As Forças Armadas executaram, para acabar com a guerrilha, três campanhas — Papagaio, Sucuri e Marajoara. Na terceira, a ordem era não fazer prisioneiros. Duas equipes de execuções de guerrilheiros foram montadas: a Zebra e Jiboia. A repressão teria ainda terceirizado a guerra com a contratação de jagunços e de índios que viviam na região.

“Há registro da presença de um índio na equipe que chegou ao acampamento de Gra­bois, no Natal de 1973. Tanto que, antes de chegar ao acampamento, ao ver uma claranabóia, um inseto mitológico para os suruís, esse índio se assustou. O barulho permitiu que guerrilheiros com condições conseguissem escapar”, registra o repórter e escritor.
Quando Sebastião Curió entrou no Araguaia?

Ele chegou ao Araguaia em setembro de 1972. É o que consta nas suas folhas de alteração, os registros da carreira militar. Essa pergunta é decisiva para entender o mito do major Curió, o oficial que estava por trás de “todos” os episódios ocorridos no Bico do Papagaio, uma figura útil para esconder outros rostos da repressão. É a partir de maio de 1973 que ele passa a ocupar papel relevante no combate à guerrilha, quando desembarcou em Araguaína para chefiar a Sucuri, uma operação de inteligência que tinha por objetivo levantar subsídios para o ataque final.

Quando e como morreu Maurício Grabois, um dos principais líderes do PCdoB?
Maurício Grabois morreu no Natal de 1973. Estava doente, quase cego. Um grupo de paraquedistas chegou atirando no acampamento do líder da guerrilha. Naquele dia também morreram Gilberto Olímpio Maria, Paulo Mendes Rodrigues e Guilherme Gomes Lund. Ao longo do tempo, militares tentaram incluir outros guerrilheiros na lista de mortos do Natal, para dar uma dimensão maior ao episódio. Não houve um combate entre militares e a cúpula da guerrilha, mas o massacre de quatro homens sem condições de andar ou mesmo segurar uma arma. De certa forma, a história do massacre da comissão militar da guerrilha ilustra e dá a dimensão exata de um conflito assimétrico.
Quais as circunstâncias da morte de Lúcia Maria de Souza?
A guerrilheira foi vista na beira de um igapó, área alagada, por uma patrulha de [coronel] Lício [Maciel]. Curió estava na equipe. Houve troca de tiros. Antes de ser metralhada, ela feriu os dois oficiais. Ainda recebeu tiro de misericórdia.

“Mata!” relata a morte do goiano Divino Ferreira de Souza, codinome Nunes?
O Jornal Opção e “O Globo” fizeram trabalhos importantes de reconstituição dos últimos momentos de Nunes. No ataque da equipe do coronel Lício Maciel em que morreu André Grabois, filho de Maurício, chefe da guerrilha, num sítio da mata, Nunes levou um tiro no quadril. Ele foi capturado e levado de helicóptero para a base da Casa Azul, em Marabá. Morreu em consequência dos ferimentos. Não deixou de sofrer tortura psicológica para falar o que sabia e o que não sabia. As informações do arquivo Curió e relatos de testemunhas confirmam uma história já contada. A data que está no arquivo pode não bater com registros anteriores. O arquivo diz que Nunes morreu a 13 de outubro de 1973, dia apontado por alguns pesquisadores como o do combate.
Como morreu Osvaldão?
O guerrilheiro foi encontrado por uma patrulha. Ele levou um tiro de espingarda do mateiro e guia Arlindo Piauí. Um militar que vinha atrás acabou de matá-lo. Osvaldão quase não tinha mais reflexo, estava seminu e faminto.
Quantos são os desaparecidos da guerrilha do Araguaia?
Desde 1995, o Estado reconheceu a morte dos guerrilheiros. Esse termo é usado nas descrições de guerrilheiros que não tiveram os corpos encontrados ou identificados. Até hoje, o governo só identificou os corpos de Maria Lúcia Petit e Bergson Gurjão Farias.

Quantos guerrilheiros foram executados depois de presos?
Dos 68 guerrilheiros mortos, 41 foram executados na selva (9) ou após passar por uma prisão (32). Outros 26 caíram em combates ou em armadilhas na mata. Há registro de uma morte ainda não explicada, possivelmente suicídio. Trata-se de uma síntese de informações de uma série de relatórios e dossiês oficiais ou particulares, já divulgados ou até então inéditos. Uso o termo guerrilheiro para falar tanto de camponeses quanto de militantes comunistas que vieram das cidades.
Lucas Figueiredo diz que índios foram usados na caçada aos guerrilheiros. A informação procede?
Há registro da presença de um índio na equipe que chegou ao acampamento de Grabois, no Natal de 1973. Tanto que, antes de chegar ao acampamento, ao ver uma claranabóia, um inseto mitológico para os suruís, esse índio se assustou. O barulho permitiu que guerrilheiros com condições conseguissem escapar.

Publicado pela revista “Carta-Capital”, o sr. considera o Diário da Guerrilha um documento verdadeiro?
No livro, trato o documento como o “suposto” diário de Grabois, por precaução. Existe a possibilidade de ter ocorrido alteração de alguns trechos. A versão conhecida foi datilografada a partir de um original manuscrito, segundo o pesquisador da área militar Carlos Ilich Santos Azambuja, que divulgou o documento em 2005.

Taís Morais diz que o documento é falso. O sr. concorda?
O material resiste a confrontos com relatos de moradores do Araguaia e documentos produzidos pelos militares. Não é possível ignorar esse texto.
A Guerrilha do Araguaia, inspirada nas táticas e estratégias de Mao Tsé-tung, não teria sido um foco como teorizou o militante e intelectual francês Régis Debray?

Ao longo do tempo se consolidou a ideia de que a guerrilha foi inspirada no modelo foquista, teorizado por Debray — a tomada do poder a partir do campo, como ocorreu em Cuba. Isso chegou a ser escrito até mesmo por integrantes da guerrilha. Mas, na prática, não sei se a teoria do foco se aplica a um movimento formado numa área estratégica para o país, o Sudeste do Pará, província mineral e onde o governo já desenvolvia projetos de infraestrutura e empresas começavam a analisar o solo. O Araguaia e o Bico do Papagaio não eram simples campos, o trecho inicial de uma jornada guerrilheira. A área não era o centro urbano, político ou econômico, mas um centro de potencial exploração mineral. Às vezes, penso que é cômodo olhar o Araguaia como um capítulo específico da Guerra Fria. Procurei olhar a guerrilha sob o prisma de um episódio da história do Brasil. João Amazonas e Pedro Pomar já idealizavam uma guerrilha ainda no Estado Novo. A concepção da guerrilha leva em conta outros movimentos que ocorreram no interior e a sua repressão pelo Exército lembra barbáries do final do século 19 e começo do 20, antes do surgimento do movimento comunista no país. Nunca me senti muito atraído a entrar na selva de teorias políticas e análises de conjuntura internacional para entender o que ocorreu no Pará. Mas paro por aqui para não apanhar.

Quanto tempo para a apuração e redação do livro?
O livro começou a ser trabalhado em 2002. Finalizei no começo do ano passado, quando entreguei o original para a editora. É um projeto que tinha desde 1997.

Os arquivos de Curió não foram “maquiados”?

Curió apresentava a história que lhe convinha. Nesses casos, a manipulação costuma ocorrer no uso dos documentos. Minha análise dos papéis do arquivo desmonta versões divulgadas pelo próprio Curió, como a captura de José Genoino, o Geraldo, em abril de 1972, ou mesmo a morte de Dinalva Teixeira, a Dina. Genoino foi preso por uma equipe do delegado Marra, de Xambioá. É um erro avaliar que um arquivo ou um testemunho vai mudar a história ou vai apresentar a verdadeira história. É preciso ressaltar que um movimento guerrilheiro ou a repressão são compartimentados. O arquivo de Curió tem uma importância simbólica incrível, mas a história é construída a partir da diversidade de fontes.
Sebastião Curió admite depor à Comissão da Verdade?
O que se espera é que todos os oficiais que atuaram no Araguaia possam ser ouvidos pelo governo. Isso é o que determina uma sentença de 2003 da Justiça, até hoje não cumprida.

Arquivo de Curió garante que Hélio Luiz “Edinho” Navarro foi fuzilado
Hélio Navarro, o Edinho, sobreviveu?

É antiga a versão de que o guerrilheiro Hélio Luiz Navarro de Magalhães, o Edinho, sobreviveu. Ele era filho e neto de nomes influentes da Marinha. Curió afirma que prendeu Edinho juntamente com Luiz René Silveira e Silva, o Duda, transferindo-os para a base da Casa Azul. O arquivo Curió destaca que os dois guerrilheiros foram fuzilados na Clareira do Cabo Rosa, um ponto da mata em Brejo Grande do Araguaia, em março de 1974. Até o momento, não foi divulgado outro registro sobre o destino de Edinho e Duda. Sempre ressalto para os amigos que o livro apresenta a versão de Curió e de outras pessoas, civis e militares, sobre o Araguaia e vem se juntar a trabalhos publicados nos últimos anos. Avalio que é importante, a partir de agora, apresentar relatos em “on” sobre o episódio. O instrumento do “off”, em que a fonte não é identificada, faz parte de uma fase ultrapassada dos estudos sobre a guerrilha. O jornalista Luiz Maklouf Carvalho, possivelmente o mais destacado pesquisador dos conflitos do Sul do Pará, acabou com essa fase do “off” ao publicar há alguns anos o livro “O Coronel Rompe o Silêncio” (Objetiva, 233 páginas), um relato do agente Lício Augusto Ribeiro Maciel [major, na época da guerrilha], repleto de confrontos de informações. Um livro admirável.



O jornalista e mestre em história Hugo Studart (autor do livro “A Lei da Selva — Estratégias, Imaginário e discurso dos Militares Sobre a Guerrilha do Araguaia”, Editora Geração Editorial, 383 páginas) sugere que guerrilheiros dados como desaparecidos podem estar vivos. O sr. concorda?
Respeito todas as linhas investigativas, mas temo a divulgação de uma pesquisa antes da publicidade das provas. Tenho consciência de que a pesquisa inconclusa — não ouso e não tenho condições de classificá-la de falsa — só causa mais dor às famílias, que vivem uma tortura permanente, e confusão entre os estudiosos. Sob certo ângulo, meu trabalho dá um passo atrás num momento de tantas possibilidades chocantes de investigação. Vou decepcionar alguns. Sigo uma linha de investigação desenvolvida há décadas pela imprensa, tradicional ou alternativa. Optei em divulgar apenas fatos que estavam em documentos ou nos relatos de mais de uma pessoa. Para mim, documentos ou depoimentos devem ser “validados” a partir do confronto de fontes. Avalio que um pesquisador pode chegar à confirmação de sua tese e encerrar seu processo de pesquisa sem ferir quem já está ferido.

Qual foi o papel protagonizado pelo sargento Santa Cruz?

Embora tenha sido um militar de baixa patente durante a guerrilha, o sargento João Santa Cruz é personagem de destaque no episódio. Ele está envolvido na prisão de guerrilheiros como Demerval Pereira, o João Araguaia, Lúcio Petit, o Beto, Uirassu Batista, o Valdir, e Antonio Ferreira Pinto, o Alfaiate, camponês que virou guerrilheiro. Santa Cruz também teve acesso ao corredor dos presos da Casa Azul. Ele viu, por exemplo, Dinaelza Coqueiro, a Maria Diná. Santa Cruz viveu na Bacaba por muito tempo. Na fase pós-guerrilha, ele se desentendeu com Curió.

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