quarta-feira, 25 de julho de 2012
"Morre lentamente quem se transforma em escravo do hábito, repetindo todos os dias os mesmos trajetos, quem não muda de marca, não se arrisca a vestir uma nova cor ou não conversa com quem não conhece.
Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru.
Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o negro sobre o branco e os pontos sobre os “is” em detrimento de um redemoinho de emoções, justamente as que resgatam o brilho dos olhos, sorrisos dos bocejos, corações aos tropeços e sentimentos.
Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz com o seu trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho, quem não se permite pelo menos uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos.
Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música, quem não encontra graça em si mesmo.
... Morre lentamente quem destrói o seu amor-próprio, quem não se deixa ajudar.
Morre lentamente, quem passa os dias queixando-se da sua má sorte ou da chuva incessante.
Morre lentamente, quem abandona um projeto antes de iniciá-lo, não pergunta sobre um assunto que desconhece ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.
Evitemos a morte em doses suaves, recordando sempre que estar vivo exige um feito muito maior que o simples fato de respirar. Somente a ardente paciência fará com que conquistemos uma esplêndida felicidade". Pablo Neruda
Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru.
Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o negro sobre o branco e os pontos sobre os “is” em detrimento de um redemoinho de emoções, justamente as que resgatam o brilho dos olhos, sorrisos dos bocejos, corações aos tropeços e sentimentos.
Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz com o seu trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho, quem não se permite pelo menos uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos.
Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música, quem não encontra graça em si mesmo.
... Morre lentamente quem destrói o seu amor-próprio, quem não se deixa ajudar.
Morre lentamente, quem passa os dias queixando-se da sua má sorte ou da chuva incessante.
Morre lentamente, quem abandona um projeto antes de iniciá-lo, não pergunta sobre um assunto que desconhece ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.
Evitemos a morte em doses suaves, recordando sempre que estar vivo exige um feito muito maior que o simples fato de respirar. Somente a ardente paciência fará com que conquistemos uma esplêndida felicidade". Pablo Neruda
quarta-feira, 18 de julho de 2012
Para entender a fome
Segundo a ONU, entre 9 e 10 milhões de pessoas morrem de fome por ano. Para quem nunca experimentou a fome crônica, é muito difícil entender o que ela significa
O poeta russo Nikolai Nekrasov (1821-1878) disse certa vez que "...no mundo impera um czar impiedoso: Fome é o seu nome!" Ele estava certo. De acordo com a FAO (Food and Agricultural Organization), órgão das Nações Unidas, tivemos, em 2009, mais de 1 bilhão de pessoas no mundo passando fome crônica. Este é o mais alto índice desde 1970, quando começaram a ter estatísticas sobre o assunto. A fome se concentra nos países não desenvolvidos e é a maior vergonha para o planeta. Também, de acordo com a ONU e a UNICEF, temos entre 9-10 milhões de pessoas que morrem de fome por ano. Este número significa 26.000 mortes por dia ou 1.100 mortes por hora e é a maior causa de mortalidade no mundo.
Em 1974, a ONU reiterou que o homem tem o direito de ser livre da fome e a comunidade internacional deveria ter como objetivo garantir a todos o alimento suficiente para viver. Os anos se passaram, mas o problema continua. Para quem nunca experimentou a fome crônica, é muito difícil entender o que ela significa. Quando colocar algo no estômago é a maior preocupação da vida, fica impossível pensar no futuro.
Uma mãe que vê seu filho morrer de fome em seus braços não tem como entender qual o motivo de ele ter nascido. A fome é como uma doença seletiva, que não afeta determinados países e certas classes da sociedade. Ela não é classificada como uma pandemia, pois não é contagiosa, mas ela mata mais do que qualquer doença. Há quem diga que é inerente à civilização e que sempre existiu. Uns dizem que é falta de alimentos, mas na verdade, o que falta é o acesso aos alimentos. Os alimentos existem e o desperdício é grande. Problemas de colheitas, transporte, armazenamento, a ganância de quem vive da desgraça alheia e outras questões contribuem para esta vergonhosa situação.
No final de 2011, a editora-chefe da Deutsche Welle, a empresa internacional de comunicação da Alemanha, afirmou que a fome é politicamente tolerada e aceita, pois há coisas mais importantes e as vozes dos famintos não contam. O fato é que este impiedoso czar continua governando o mundo e, a cada ano que passa, ele fica mais poderoso e ávido por vidas humanas.
Célio Pezza é escritor e autor de diversos livros, entre eles As Sete Portas e A Nova Terra - Recomeço. Saiba mais em seu blog
18 de Julho de 2012 às 14:35
Segundo a ONU, entre 9 e 10 milhões de pessoas morrem de fome por ano. Para quem nunca experimentou a fome crônica, é muito difícil entender o que ela significa
O poeta russo Nikolai Nekrasov (1821-1878) disse certa vez que "...no mundo impera um czar impiedoso: Fome é o seu nome!" Ele estava certo. De acordo com a FAO (Food and Agricultural Organization), órgão das Nações Unidas, tivemos, em 2009, mais de 1 bilhão de pessoas no mundo passando fome crônica. Este é o mais alto índice desde 1970, quando começaram a ter estatísticas sobre o assunto. A fome se concentra nos países não desenvolvidos e é a maior vergonha para o planeta. Também, de acordo com a ONU e a UNICEF, temos entre 9-10 milhões de pessoas que morrem de fome por ano. Este número significa 26.000 mortes por dia ou 1.100 mortes por hora e é a maior causa de mortalidade no mundo.
Em 1974, a ONU reiterou que o homem tem o direito de ser livre da fome e a comunidade internacional deveria ter como objetivo garantir a todos o alimento suficiente para viver. Os anos se passaram, mas o problema continua. Para quem nunca experimentou a fome crônica, é muito difícil entender o que ela significa. Quando colocar algo no estômago é a maior preocupação da vida, fica impossível pensar no futuro.
Uma mãe que vê seu filho morrer de fome em seus braços não tem como entender qual o motivo de ele ter nascido. A fome é como uma doença seletiva, que não afeta determinados países e certas classes da sociedade. Ela não é classificada como uma pandemia, pois não é contagiosa, mas ela mata mais do que qualquer doença. Há quem diga que é inerente à civilização e que sempre existiu. Uns dizem que é falta de alimentos, mas na verdade, o que falta é o acesso aos alimentos. Os alimentos existem e o desperdício é grande. Problemas de colheitas, transporte, armazenamento, a ganância de quem vive da desgraça alheia e outras questões contribuem para esta vergonhosa situação.
No final de 2011, a editora-chefe da Deutsche Welle, a empresa internacional de comunicação da Alemanha, afirmou que a fome é politicamente tolerada e aceita, pois há coisas mais importantes e as vozes dos famintos não contam. O fato é que este impiedoso czar continua governando o mundo e, a cada ano que passa, ele fica mais poderoso e ávido por vidas humanas.
Célio Pezza é escritor e autor de diversos livros, entre eles As Sete Portas e A Nova Terra - Recomeço. Saiba mais em seu blog
18 de Julho de 2012 às 14:35
terça-feira, 17 de julho de 2012
JORNAL MOVIMENTO SUCURSAL BELO HORIZONTE
A sucursal de Belo Horizonte foi a mais poderosa, chegou a reunir 500 apoiadores. Era a que mais vendia jornais, que mais vendia assinaturas e cotas de acionistas, depois da sede em São Paulo.
O núcleo do jornal em Belo Horizonte começou a partir das articulações de Marcos Gomes e Luiz Bernardes, que reuniram inúmeros colaboradores e acionistas no seu entorno. O jornalista Lélio Fabiano dos Santos, que usava sua sala de diretor da escola de Comunicação da PUC como uma pequenina redação, foi o primeiro correspondente. Lélio dividia seu pequeno salário com dois jovens jornalistas, Marco Antonio Vale e José Eustáquio.
Movimento teria uma sucursal em Belo Horizonte já em outubro de 1975. E isso se deveu bastante aos esforços de Alberto Dias Duarte, o Betinho, um pequeno empresário que havia sido militante da Ação Popular. Procurado por Marcos Gomes para ajudar a vender cotas, Betinho foi além, ofereceu uma das salas do prédio da rua Rio de Janeiro, onde funcionava a sua empresa Cifra Ltda., como sede da sucursal. “A infraestrutura praticamente toda era da minha empresa. Que eu me lembre, nunca recebi um centavo do jornal”, diz Betinho.
Ele cuidava da parte administrativa, enquanto Lélio comandava a redação. Com uma sede fixa, o grupo ia crescendo. A convite de Betinho entraram novos colaboradores, gente politizada e intelectualizada, como Aloisio Marques, João Batista dos Mares Guia, Fausto Brito, Flávio Andrade, Flaminio Fantini, Murilo Albernaz, Maria das Dores Freire e Fernando Pimentel18, todos muito atuantes nas intensas discussões internas de Movimento das quais se falará logo mais.
No começo de 1976, Raimundo Pereira foi a Belo Horizonte para organizar pessoalmente a estrutura da nova sucursal. Betinho foi nomeado chefe, tendo o jornalista Fernando Miranda como redator-chefe. A sucursal tornou-se uma usina de articulação, textos e ideias. No primeiro ano já havia mais de 30 pessoas colaborando das mais variadas maneiras. Belo Horizonte teve, por exemplo, uma das maiores produções de contos e crônicas entre as sucursais; naquele ano, 22 Estórias Brasileiras foram enviadas, embora apenas dez tenham sido publicadas. Quanto às reportagens, das 201 matérias enviadas, 64 foram publicadas e 41 vetadas pela censura.19 A sucursal cumpria as pautas indicadas pela sede, mas ia tomando a iniciativa de fazer outras matérias sem que o jornal tivesse condições de publicá-las.
“A produção era enorme, nós aglutinávamos dezenas de pessoas”, lembra Betinho. “Raimundo pedia algumas matérias, nós fazíamos essas matérias, mas também muitas outras, porque tínhamos aqui intelectuais brilhantes”. Ele conta como buscava agregar ainda mais:
Tinha João Machado, cujo apelido era João Campeão, que foi da executiva nacional do PT e hoje é do Partido Socialismo e Liberdade, Psol. Fui atrás dele e do Flávio Andrade, eles moravam no bairro Santo Antônio. Eu cheguei lá, falei: “Ô, vocês são intelectuais de quê? Vocês não fazem nada. Por que vocês não vão lá para o jornal Movimento?”. Eles foram.
Com tantos braços dispostos a ajudar, a turma de Belo Horizonte assumiu uma atividade importante: reimprimia os relatórios sobre a censura, feitos em São Paulo, e os distribuía. Enquanto a matriz os enviava para personalidades relacionadas, Minas enviava aos acionistas, assinantes e colaboradores, num total de 200 exemplares por semana.
Nas vendas, um grande grupo de estudantes universitários ajudava em mutirão. Betinho e Fernando Pimentel iam até o aeroporto da Pampulha todos os sábados para recolher os pacotes. De volta ao escritório, a turma já estava a postos para envelopar os exemplares e postar no correio local até as cinco da tarde. Mesmo assim, o jornal só chegava terça ou quarta-feira para os leitores.
A outra parte dos exemplares era levada pelos estudantes para ser vendida em faróis, bares e restaurantes, como conta Betinho. “Eles sabiam onde era o point de intelectuais e da classe média, saíam e vendiam para valer. Os estudantes vendiam não só por uma decisão política, mas também porque ganhavam uns trocados para tomar umas à noite”. Entre os vendedores estava Nilmário Miranda, recém-saído da prisão, que mais tarde seria deputado estadual, federal e ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos no primeiro governo de Lula, mas naquela época foi, segundo o ex-chefe da sucursal, “um dos maiores vendedores de assinaturas do jornal Movimento”.
A sucursal mineira rapidamente se tornou a mais rentável.
Até o início de 1978, a receita de Movimento em Belo Horizonte vinha principalmente de assinaturas (78%). Ajudou muito a ideia de Alberto Duarte, posta em prática pela primeira vez em Belo Horizonte, de vender assinaturas parceladas para o público de menor renda. “O preço da assinatura não era para trabalhadores, eu introduzi um esquema de venda em carnê, em suadas prestações mensais. Foi a popularização do jornal”. O método seria repetido em outros lugares.
Em um relatório de julho de 1976, Raimundo Pereira resumia:
A experiência de Belo Horizonte é a mais rica das experiências
das sucursais de Movimento – é a que mais vendeu assinaturas
e a que mais se reuniu para discutir o jornal; é das que mais enviou artigos e cartas ao jornal e mais formou novos
colaboradores; Belo Horizonte foi a única sucursal a apresentar ao Conselho de Redação um projeto formal para o seu funcionamento; a primeira sucursal a divulgar entre os nossos acionistas e principais colaboradores a lista de matérias vetadas.
A sucursal de Belo Horizonte foi origem do primeiro grande debate dentro do jornal, o chamado “caso Murilo Albernaz”, a ser contado depois. Os mineiros também foram dos que mais insistiram pela expansão formal do Conselho de Redação e houve inúmeras discussões visando a formulação do estatuto, que ele ainda não tinha.
http://www.oficinainforma.com.br/movimento/livro_movimento.html
A sucursal de Belo Horizonte foi a mais poderosa, chegou a reunir 500 apoiadores. Era a que mais vendia jornais, que mais vendia assinaturas e cotas de acionistas, depois da sede em São Paulo.
O núcleo do jornal em Belo Horizonte começou a partir das articulações de Marcos Gomes e Luiz Bernardes, que reuniram inúmeros colaboradores e acionistas no seu entorno. O jornalista Lélio Fabiano dos Santos, que usava sua sala de diretor da escola de Comunicação da PUC como uma pequenina redação, foi o primeiro correspondente. Lélio dividia seu pequeno salário com dois jovens jornalistas, Marco Antonio Vale e José Eustáquio.
Movimento teria uma sucursal em Belo Horizonte já em outubro de 1975. E isso se deveu bastante aos esforços de Alberto Dias Duarte, o Betinho, um pequeno empresário que havia sido militante da Ação Popular. Procurado por Marcos Gomes para ajudar a vender cotas, Betinho foi além, ofereceu uma das salas do prédio da rua Rio de Janeiro, onde funcionava a sua empresa Cifra Ltda., como sede da sucursal. “A infraestrutura praticamente toda era da minha empresa. Que eu me lembre, nunca recebi um centavo do jornal”, diz Betinho.
Ele cuidava da parte administrativa, enquanto Lélio comandava a redação. Com uma sede fixa, o grupo ia crescendo. A convite de Betinho entraram novos colaboradores, gente politizada e intelectualizada, como Aloisio Marques, João Batista dos Mares Guia, Fausto Brito, Flávio Andrade, Flaminio Fantini, Murilo Albernaz, Maria das Dores Freire e Fernando Pimentel18, todos muito atuantes nas intensas discussões internas de Movimento das quais se falará logo mais.
No começo de 1976, Raimundo Pereira foi a Belo Horizonte para organizar pessoalmente a estrutura da nova sucursal. Betinho foi nomeado chefe, tendo o jornalista Fernando Miranda como redator-chefe. A sucursal tornou-se uma usina de articulação, textos e ideias. No primeiro ano já havia mais de 30 pessoas colaborando das mais variadas maneiras. Belo Horizonte teve, por exemplo, uma das maiores produções de contos e crônicas entre as sucursais; naquele ano, 22 Estórias Brasileiras foram enviadas, embora apenas dez tenham sido publicadas. Quanto às reportagens, das 201 matérias enviadas, 64 foram publicadas e 41 vetadas pela censura.19 A sucursal cumpria as pautas indicadas pela sede, mas ia tomando a iniciativa de fazer outras matérias sem que o jornal tivesse condições de publicá-las.
“A produção era enorme, nós aglutinávamos dezenas de pessoas”, lembra Betinho. “Raimundo pedia algumas matérias, nós fazíamos essas matérias, mas também muitas outras, porque tínhamos aqui intelectuais brilhantes”. Ele conta como buscava agregar ainda mais:
Tinha João Machado, cujo apelido era João Campeão, que foi da executiva nacional do PT e hoje é do Partido Socialismo e Liberdade, Psol. Fui atrás dele e do Flávio Andrade, eles moravam no bairro Santo Antônio. Eu cheguei lá, falei: “Ô, vocês são intelectuais de quê? Vocês não fazem nada. Por que vocês não vão lá para o jornal Movimento?”. Eles foram.
Com tantos braços dispostos a ajudar, a turma de Belo Horizonte assumiu uma atividade importante: reimprimia os relatórios sobre a censura, feitos em São Paulo, e os distribuía. Enquanto a matriz os enviava para personalidades relacionadas, Minas enviava aos acionistas, assinantes e colaboradores, num total de 200 exemplares por semana.
Nas vendas, um grande grupo de estudantes universitários ajudava em mutirão. Betinho e Fernando Pimentel iam até o aeroporto da Pampulha todos os sábados para recolher os pacotes. De volta ao escritório, a turma já estava a postos para envelopar os exemplares e postar no correio local até as cinco da tarde. Mesmo assim, o jornal só chegava terça ou quarta-feira para os leitores.
A outra parte dos exemplares era levada pelos estudantes para ser vendida em faróis, bares e restaurantes, como conta Betinho. “Eles sabiam onde era o point de intelectuais e da classe média, saíam e vendiam para valer. Os estudantes vendiam não só por uma decisão política, mas também porque ganhavam uns trocados para tomar umas à noite”. Entre os vendedores estava Nilmário Miranda, recém-saído da prisão, que mais tarde seria deputado estadual, federal e ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos no primeiro governo de Lula, mas naquela época foi, segundo o ex-chefe da sucursal, “um dos maiores vendedores de assinaturas do jornal Movimento”.
A sucursal mineira rapidamente se tornou a mais rentável.
Até o início de 1978, a receita de Movimento em Belo Horizonte vinha principalmente de assinaturas (78%). Ajudou muito a ideia de Alberto Duarte, posta em prática pela primeira vez em Belo Horizonte, de vender assinaturas parceladas para o público de menor renda. “O preço da assinatura não era para trabalhadores, eu introduzi um esquema de venda em carnê, em suadas prestações mensais. Foi a popularização do jornal”. O método seria repetido em outros lugares.
Em um relatório de julho de 1976, Raimundo Pereira resumia:
A experiência de Belo Horizonte é a mais rica das experiências
das sucursais de Movimento – é a que mais vendeu assinaturas
e a que mais se reuniu para discutir o jornal; é das que mais enviou artigos e cartas ao jornal e mais formou novos
colaboradores; Belo Horizonte foi a única sucursal a apresentar ao Conselho de Redação um projeto formal para o seu funcionamento; a primeira sucursal a divulgar entre os nossos acionistas e principais colaboradores a lista de matérias vetadas.
A sucursal de Belo Horizonte foi origem do primeiro grande debate dentro do jornal, o chamado “caso Murilo Albernaz”, a ser contado depois. Os mineiros também foram dos que mais insistiram pela expansão formal do Conselho de Redação e houve inúmeras discussões visando a formulação do estatuto, que ele ainda não tinha.
http://www.oficinainforma.com.br/movimento/livro_movimento.html
MANIFESTO DOS JORNALISTAS DEMISSIONÁRIOS DO OPINIÃO:
“Aos leitores do Opinião e aos Jornalistas, Rio de Janeiro, 28-02-1975. O proprietário jurídico do jornal não é, simultaneamente, o dono de seu pensamento e orientação, mas concorda, também,em submeter à discussão suas sugestões editoriais (…) foram esse princípios de funcionamento
democrático que possibilitaram ao jornal superar suas diversas crises e inclusive se fortalecer
(…)
No dia 18 passado, contudo, Fernando Gasparian comunicou ao editor Raimundo Rodrigues Pereira a decisão de afastá-lo do jornal. A posição irredutível do proprietário (…) sem aceitar
as várias propostas de mediação que lhe foram oferecidas, inclusive a criação de um conselho editorial ao qual um alegado personalismo do editor ficasse subordinado, implicava (…) no
rompimento da prática democrática do jornal. Em vista disso, a redação resolveu se afastar coletivamente de Opinião, com o propósito de constituir um novo jornal que abrigue as amplas
correntes de opinião que compõem as forças democráticas do País…” (Citado em “Jornalistas e revolucionários”, Bernardo Kucinski.)
“Aos leitores do Opinião e aos Jornalistas, Rio de Janeiro, 28-02-1975. O proprietário jurídico do jornal não é, simultaneamente, o dono de seu pensamento e orientação, mas concorda, também,em submeter à discussão suas sugestões editoriais (…) foram esse princípios de funcionamento
democrático que possibilitaram ao jornal superar suas diversas crises e inclusive se fortalecer
(…)
No dia 18 passado, contudo, Fernando Gasparian comunicou ao editor Raimundo Rodrigues Pereira a decisão de afastá-lo do jornal. A posição irredutível do proprietário (…) sem aceitar
as várias propostas de mediação que lhe foram oferecidas, inclusive a criação de um conselho editorial ao qual um alegado personalismo do editor ficasse subordinado, implicava (…) no
rompimento da prática democrática do jornal. Em vista disso, a redação resolveu se afastar coletivamente de Opinião, com o propósito de constituir um novo jornal que abrigue as amplas
correntes de opinião que compõem as forças democráticas do País…” (Citado em “Jornalistas e revolucionários”, Bernardo Kucinski.)
Segundo capítulo do livro-reportagem sobre “Movimento” revela: equipe queria jornal-cooperativa, era radical contra ditadura, zombava do patrão
Jornal Movimento: uma reportagem
Por Carlos Azevedo, autor de
“Cada redator, cada colaborador de Movimento chegou ao jornal por seu caminho pessoal e na certa o vê como uma passagem: não sendo como um castelo, de pedra e argamassa, que se constrói para ser eterno, um jornal é talvez como uma viagem”. Assim começava o texto “Nasce um Jornal”, publicado no “número zero” de Movimento, na verdade, uma peça de propaganda na forma de uma edição preliminar de oito páginas em formato tabloide, com 70 mil exemplares de tiragem, destinada a conquistar acionistas e leitores. O objetivo, concretizar o projeto de um “jornal feito por uma empresa de jornalistas” que acreditavam que sua tarefa profissional era “não apenas descrever o mundo, mas ajudar a transformá-lo”.
Escrevendo na primeira pessoa do singular, o editor-chefe Raimundo Rodrigues Pereira explicava ao longo do editorial como, onde e por que nasceu a ideia de um jornal independente:
“Para mim, a viagem começa em 1968, o ano das agitações de maio da França, da invasão da Checoslováquia, da ofensiva do Tet no Vietnã do Sul e do Ato Institucional nº 5 e do fechamento do Congresso, no Brasil. Em 1968, no jornalismo brasileiro estava se fazendo a equipe de Veja e se desfazendo a equipe da Realidade (…) O fim da primeira equipe de Realidade se devia a um desses dilemas a que sistematicamente chega uma equipe que cria um jornal para uma empresa e que, com o passar do tempo, e com o sucesso da publicação, começa a acreditar que a publicação é dela, não do dono. O resultado da crise foi que a equipe saiu e o dono ficou”.
Na época, Realidade era a principal referência do bom jornalismo brasileiro, não apenas por suas reportagens, que desnudavam o País da ditadura militar, mas também pelo brilho e independência de sua redação, que se demitiu quando a interferência do patrão na vida da revista se tornou incontornável. Em parte, foi a partir da experiência em Realidade que nasceu o sonho do “jornal dos jornalistas”, das publicações sem patrão.
Raimundo Pereira em 1968 estava na revista Veja. Saiu em 1970, quando sentiu que não tinha mais condições de continuar seu trabalho. Em 1971 e 1972, comandou as edições especiais “Amazônia” e “Cidades” da revista Realidade. Nesse período, remanescentes da antiga equipe de Realidade, alimentando o desejo de autonomia, haviam criado a editora Arte & Comunicação, que fazia revistas independentes, Bondinho, Jornalivro, Grilo. Colaborador marginal dessa experiência, Raimundo imaginava a possibilidade de se fazer um jornal político junto ao pessoal da A&C.
No final de 1971 um grupo de editores e ex-editores da revista Realidade estava reunido em torno de um “boneco” (projeto gráfico) de Assuntos, uma publicação independente, a ser financiada em parte por seus editores. No grupo estavam quatro dos futuros editores de Movimento: Elifas Andreato, editor de arte da Abril Cultural, Dirceu Brisola, editor assistente de Veja no setor de política nacional, Antonio Carlos Ferreira (Tonico), jornalista e arquiteto, e eu.
Os quatro citados pelo editor-chefe faziam parte de um grupo maior, que incluía Eurico Andrade, repórter da equipe pioneira de Realidade, Dorrit Harazin, repórter da revista Veja, e Matias Molina, jornalista de Economia da Editora Abril. Juntos haviam concebido “Assuntos”, que Eurico Andrade imaginava como uma publicação de cunho político, um “Le Mondinho”, como dizia, referindo-se a uma combinação do “jornal dos jornalistas” dos franceses, o Le Monde, com o Bondinho dos brasileiros. Os dois grupos não chegaram a um acordo, a A&C faliu e a ideia ficou à espera de outras oportunidades.
Bernardo Kucinski, então amigo próximo de Raimundo, havia ido morar em Londres, onde conheceu o empresário Fernando Gasparian. Este também estava morando na capital inglesa, numa espécie de exílio, depois que seu amigo Rubens Paiva fora assassinado pela ditadura e ele mesmo sofrera ameaças de atentados. O empresário nacionalista queria fazer um jornal político no Rio de Janeiro. Kucinski mostrou-lhe um exemplar da edição do quarto aniversário de Veja, produzida por Raimundo a convite de Mino Carta, editor-chefe da revista, que, na apresentação, cobria Raimundo de elogios. Bernardo sugeriu que este fosse o editor do novo jornal. Gasparian reagiu positivamente.
A reação do grupo de Assuntos à proposta de Gasparian foi descrita detalhadamente no texto de Raimundo no número zero de Movimento:
“Bernardo me indicou para editor de Opinião, que era então uma espécie de The New Statesman brasileiro na cabeça de Fernando Gasparian; o grupo que pensava em Assuntos viu no convite boa oportunidade. O sentimento geral (…) era mais ou menos o seguinte: sentia-se um certo cansaço do jornalismo de grande empresa; acreditava-se que a tarefa do jornalista não é apenas a de descrever o mundo, mas de ajudar a transformá-lo; e que as grandes empresas jornalísticas tinham se acomodado a uma situação de censura progressiva que vinha asfixiando a imprensa brasileira há algum tempo. Mas havia obstáculos para um acordo com o empresário.
“O projeto de Opinião se atrasou um mês porque nós insistíamos em ter uma forma de assegurar a presença da redação em todas as decisões. Se queria ter pelo menos 49% das ações da empresa (…). Gasparian disse que não acreditava na possibilidade de sobrevivência de uma empresa que tivesse como donos muitos jornalistas. Garantiu que o fato de ele ter a propriedade jurídica de Opinião não significava que fosse dono das ideias do jornal. Concordou em fazer Opinião como um jornal que fosse propriedade intelectual de todos que o fizessem. Mas queria ter toda a propriedade jurídica.
A busca de alternativa foi infrutífera, prossegue o texto:
O grupo de Assuntos julgou que aquelas declarações não eram suficientes. Passou um mês procurando nova forma de capitalizar seu projeto. Não conseguiu; então tornou a procurar Gasparian.
Decidimos fazer Opinião nas bases propostas por Gasparian, para formar uma equipe e adquirir experiência até onde fosse possível. Depois, se a experiência fosse interrompida – uma possibilidade que já se antevia pelo fato de a redação não ter nenhum mecanismo de controle sobre o jornal – prosseguir com o projeto de ter uma empresa jornalística onde as pessoas que escrevessem, de fato e de direito, ou seja, também juridicamente, tivessedom o poder de decisão para garantir a observação de suas idéias. Opinião foi lançado em 23 de outubro de 1972, num coquetel ao qual Raimundo não compareceu, desagradando Gasparian logo de cara.
“Eu era muito purista, foi uma bobagem”, reconheceu o jornalista depois. O jornal foi pioneiro por se apresentar abertamente de oposição à ditadura, embora fortemente censurado, além de ser um exemplo de respeito à independência da redação. Como Raimundo reconheceu no texto do número zero de Movimento: Durante os 121 números em que a equipe de jornalistas que se organizou em torno daqueles editores do projeto de Assuntos esteve em Opinião, os termos do acordo com Fernando Gasparian foram cumpridos: o dono do jornal não foi simultaneamente o dono das suas idéias, mas concordou, ele também, em submeter à discussão da redação suas ideias e editoriais. Até que sobreveio a demissão do editor. O sonho do jornal independente esteve todo tempo vivo na redação de Opinião como se percebe em uma entrevista concedida por Raimundo, às vésperas do lançamento de Movimento, para outro jornal independente, o Ex, quando fez um balanço do desempenho de sua equipe em Opinião:
“A principal coisa: nós desmentimos a grande imprensa. A primeira fase de Opinião foi a fase de demonstrar o que as grandes publicações não faziam, porque tinham escolhido a estratégia da adesão. Afinal é um jornal feito com 300 mil cruzeiros (capital inicial, equivalente a 916 mil reais de 20111) e que colocou a política em primeiro lugar. E só porque para lá convergiam alguns jornalistas independentes, mais uma série de intelectuais que não tinham outro lugar para escrever, em pouco tempo Opinião estava concorrendo nas bancas com as grandes publicações”.
O novo semanário foi um sucesso de vendas, segundo a entrevista:
“Opinião, até o número 24, foi de 28 mil pra perto de 38 mil exemplares vendidos. Veja estava vendendo pouco mais de 40 mil nas bancas, e Visão, nas bancas, vendia perto de 10 mil. A redação do Opinião chegou a ser uma das maiores do País, em termos de esforços mobilizados a favor dela. Fora do País, era um negócio maior ainda: tinha o Robert Kennedy mandando entrevistas, tinha essas grandes publicações estrangeiras cedendo direitos pro Opinião só porque o Opinião resistia à censura”.
Raimundo concluía com uma avaliação positiva: “Fizemos 121 edições em 2 anos e três meses, mais 2 meses de preparação. Total de 2 anos e meio de trabalho no Opinião. Mais ou menos o tempo que durou a equipe de Realidade, um grande tempo.”2
A POLÊMICA DA DEMISSÃO
No dia 18 de fevereiro de 1975, Fernando Gasparian havia demitido o editor chefe Raimundo Pereira, alegando “problemas pessoais”, como reafirmaria na nota publicada na edição 122 de Opinião, na semana seguinte. A redação, que havia participado da fundação do semanário e contribuído para seu indiscutível sucesso, considerou a atitude incompatível com os princípios do jornal e a grande maioria se demitiu, sem deixar de fornecer sua própria versão do episódio: em uma nota lida na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a equipe insistia no conteúdo político da demissão em um momento delicado, quando se discutia o significado da distensão prometida pelo presidente Ernesto Geisel.
Alguns episódios vinham desgastando as relações entre Gasparian e o editor-chefe. Um exemplo foi a matéria publicada em dezembro do ano anterior na seção de política, como parte de um conjunto de perfis dos deputados do MDB eleitos em novembro. O texto relatava que o deputado Marcos Tito, do MDB mineiro, havia feito campanha se apresentando como “autêntico” e depois de eleito recusou essa condição, decepcionando os estudantes que o haviam apoiado. Gasparian não costumava interferir no trabalho editorial, mas considerou a matéria uma provocação (a redação não sabia, mas ele dera apoio material à campanha de Marcos Tito) e exigiu que o responsável, Luiz Bernardes, da sucursal de Belo Horizonte, fosse demitido. Raimundo foi investigar os fatos e concluiu que Bernardes havia escrito a nota “jornalisticamente” e se recusou a demiti-lo.
Outro episódio desgastante: o governo não se limitava à censura para tentar inviabilizar Opinião. Fernando Gasparian aprendeu isso quando se deu conta de que estava sendo de diversas maneiras boicotado pelo governo. Ficou indignado quando bancos oficiais como o Banco do Brasil recusaram-se a aceitar duplicatas da Editora Inúbia, que editava o jornal. Acabou por apelar para José Aparecido, que era representante do banqueiro e senador Magalhães Pinto, presidente da Arena, o partido do governo e um dos líderes destacados do regime. Ele era dono do Banco Nacional e foi por meio dessas relações pessoais que Gasparian conseguiu descontar suas duplicatas. Uma crítica feita pelos jornalistas de Opinião a Magalhães Pinto (sua cabeça teria a forma de um joelho) pode ter colocado Gasparian em dificuldades com o seu único banqueiro.
“FOI A QUESTÃO DO GEISEL”
O texto de Raimundo no número zero de Movimento citava sete incidentes entre o dono do jornal e ele. Mas antes sempre haviam chegado a um acordo, quase sempre intermediado por amigos de Gasparian e colaboradores como o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, e um editor da Editora Abril, Pedro Paulo Popovic. Algumas vezes, a redação assumia o erro, como ocorreu quando uma matéria sobre um show de Chico Buarque e Caetano Veloso reproduziu palavrões ditos pelos artistas. “Nós vamos ser fechados por ter publicado um palavrão, isso é um absurdo!”, reagiu Gasparian. Às vezes era Gasparian quem cedia, como aconteceu quando pediu a Raimundo para ler as matérias antes de serem publicadas. “Respondi: ‘Então você põe outro editor, porque esse é o meu papel’, e ele voltou atrás”, lembra Raimundo.4
Para o ex-editor-chefe de Opinião, porém, não foram esses incidentes que provocaram a demissão. Gasparian sabia que todos, inclusive os militares, o consideravam pessoalmente responsável pelo que era publicado no jornal, mesmo quando estava em desacordo com a redação, como ocorria frequentemente quando o tema era a distensão promovida por Geisel:
“A briga mesmo foi a questão do Geisel, que Gasparian dizia ser nacionalista, e nossa postura colocando em dúvida a distensão prometida por ele”, opina Raimundo. “Nós fizemos duas matérias bem fortes para mostrar quem era Geisel de fato: uma, dos votos de Geisel quando era ministro no Superior Tribunal Militar (STM), e outra, sobre a política de exploração de petróleo da Petrobras. E o Gasparian queria pôr anúncio da Petrobras de graça no Opinião!”, lembra o ex-editor-chefe.
“Nós não tínhamos a menor dúvida do caráter político da demissão, porque não estávamos fazendo isso de ingênuos.
“Tínhamos uma posição política, estávamos disputando a orientação do jornal. Chegamos a dizer: ‘Nós também somos donos do jornal’, o que é uma ficção mas também tem a ver. O jornal não saiu daquele jeito da cabeça do Gasparian. Foi resultado de uma mobilização mais ampla, onde ele teve um papel ultra importante como criador do jornal, com o peso de seu nome, trazendo as grandes figuras que deram prestígio ao jornal”.5
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso lembra hoje que tentou interceder:
“Eu sempre fui contrário ao divisionismo. (…) Tem que juntar, sempre foi a minha opinião, na vida, tem que agregar, não separar. Mas é muito difícil, porque ali tinha concepções políticas diferentes. Na verdade, o Opinião, na medida em que o Gasparian tinha influência, era um jornal mais nacionalista e mais interessado na questão institucional; enquanto que o Movimento era muito mais de participação ampliada, mais popular, essa coisa toda, e a questão nacional não era tão dramática quanto a questão social. Mas todos estavam no mesmo lado, estou dizendo aqui nuances”.
AINDA A DEMISSÃO
O momento era delicado também para a redação de Opinião, traumatizada por deixar o jornal, como lembra Flávio de Carvalho, que foi editor de Internacional do semanário.
“O Raimundo chegou na redação e disse: ‘Acabou’ Foi uma grande comoção… Estava terminando uma coisa em que todo mundo estava investindo, virava a noite fazendo o jornal, enfrentava a censura, era um sacrifício danado. Aquilo era a vida de todo mundo, a gente morava no Rio e ninguém ia à praia, o máximo de farra era comer pizza no (restaurante) Guanabara. Mas ali mesmo, já naquela reunião, combinamos que íamos tentar fazer outro jornal, em São Paulo”.7
Além de superar o trauma e enfrentar a aventura de fazer um novo jornal sem os recursos financeiros e o respaldo político e intelectual de Gasparian, a redação enfrentava críticas de que estaria dividindo o movimento de resistência à ditadura.
Na entrevista citada, Fernando Henrique Cardoso lembrou: “No primeiro momento, fiquei contra dividir. Pra que dividir?” Ele achava que podia pôr em risco o Opinião e não conseguir concretizar uma alternativa. (Poderia) ficar sem instrumento, sem a força do Opinião. Ficar sem um instrumento qualquer. Mas depois, dado que era inevitável, fiquei nos dois. Fui do conselho dos dois, escrevia nos dois…”
Daí a preocupação de Raimundo no texto do número zero de Movimento em demonstrar que haviam feito tudo o que podiam para reverter a decisão de Gasparian – “as discussões com Gasparian se prolongaram ao longo de vários dias” – e que as previsões de FHC não se confirmariam:
“A possibilidade de transformar a crise em um acontecimento criativo para o País surgiu quando nós decidimos fazer Movimento e, além disso, quando a maioria da equipe se convenceu de que, a despeito de o dono do jornal ter tomado uma decisão fundamentalmente errada, se devia lutar por Opinião, ajudando-o a conservar princípios duramente conquistados”.
Raimundo repetiu em entrevista em outubro de 2009 que a redação fez tudo o que pôde para manter-se em Opinião, oferecendo primeiro a possibilidade de formar uma comissão para editar o jornal e depois outro nome do time para substituir o editor-chefe:
“Eu estou quase certo que houve até o seguinte: o cara de quem o Gasparian gostava pessoalmente era o Marcos Gomes (…). Eu já sou meio avacalhado hoje, se vocês me vissem na época, eu ia com uma bermuda, dormia no meio da minha sala com uma lauda com um buraco para deixar o nariz pra fora… E o Marcos estava sempre bem vestido, era um sujeito muito mais político, tinha sido dirigente da UNE, tinha política na cabeça, conversava muito com o Gasparian. Já nós éramos jornalistas e, assim, tinha uma coisa meio liberal anarquista, né?”
Marcos Gomes opina que “a diferença se dava primeiro talvez por minha experiência política. Eu, ainda que fosse uma pessoa muito jovem, o via (Gasparian) claramente como um aliado. E eu não estava a fim de escandalizá-lo de nenhuma maneira. Quer dizer, era um escândalo para ele o Raimundo ir para a redação de bermuda, toda esfiapada (…) Então, eu tinha uma boa interlocução com ele. Uma interlocução educada, desde cumprimentá-lo”.
Luis Marcos Magalhães Gomes, então com 27 anos, de fato, já acumulara considerável experiência política. Havia tido intensa militância no movimento estudantil em Belo Horizonte. Foi eleito vice-presidente da UNE em 1966. Entrou para Ação Popular (AP), se deslocou para o meio operário, participou da organização das greves dos metalúrgicos de 1968 em Minas Gerais escrevendo jornais para os operários. Preso diversas vezes, transferiu-se para São Paulo, onde participou da direção regional da AP. Preso outra vez em 1969, acusado em 22 processos, condenado a uma pena de 4 anos, foi cumpri-la no presídio Tiradentes. Teve sua pena reduzida e foi libertado após 20 meses, em setembro de 1971. Ao sair, vigiado pelos órgãos de repressão, encontrou dificuldades para retomar a militância em Ação Popular, foi trabalhar como redator em uma agência de publicidade no Rio de Janeiro. Em 1972, seu irmão Frederico o apresentou a Raimundo Pereira, que o convidou para trabalhar em Opinião. Junto com Raimundo e Tonico, ele iria formar o trio de jornalistas que “tocava” o dia a dia na redação. Raimundo declarou em entrevista que Marcos “foi muito importante em Opinião no enfoque político mais adequado para as matérias, na definição das pautas e nos entendimentos com Gasparian”.
Sobre os motivos para a demissão de Raimundo, Marcos sugere:
“Acho que foram as duas coisas, ele (Gasparian) foi se irritando com a relação e também houve a questão da conjuntura política. O País marchando com o Geisel, o jornal numa situação financeira complicada. Acho que ele não via ali sobretudo a flexibilidade que ele estava buscando. E, quando ele propôs aquela história de publicar anúncios gratuitos da Petrobras, a redação não topou. Quer dizer, você está ali naquela resistência desgraçada, fizemos aquelas matérias sobre o governo Geisel, pegamos todos os votos dele (no STM), o cara só votava contra todo mundo. Chamar o cara de democrata nacionalista era só o que nos faltava. A redação se rebelou”.
Gasparian achou que Marcos podia substituir Raimundo: Então, Gasparian conversou comigo: “Mas por que só pode ser o Raimundo? Por que você, por exemplo, não pode editar o jornal?” Eu falei: “Fernando, você não conhece a redação que trabalha com você, porque ninguém aqui vai se dispor a substituir o Raimundo. Tem unidade tranquila em torno disso, se você vier com essa proposta, vai ser um desastre. Não tem a menor possibilidade de eu substituir o Raimundo”.9
Com a saída de Raimundo e da equipe, Opinião passou a ser editado pelo jornalista Argemiro Ferreira, que permaneceu no cargo até junho de 1976. Foi sucedido pelo próprio Gasparian, que assumiu o comando da redação e nele se manteve até abril de 1977, quando decidiu fechar o jornal, por não suportar mais a censura implacável e o boicote financeiro.
Jornal Movimento: uma reportagem
Por Carlos Azevedo, autor de
“Cada redator, cada colaborador de Movimento chegou ao jornal por seu caminho pessoal e na certa o vê como uma passagem: não sendo como um castelo, de pedra e argamassa, que se constrói para ser eterno, um jornal é talvez como uma viagem”. Assim começava o texto “Nasce um Jornal”, publicado no “número zero” de Movimento, na verdade, uma peça de propaganda na forma de uma edição preliminar de oito páginas em formato tabloide, com 70 mil exemplares de tiragem, destinada a conquistar acionistas e leitores. O objetivo, concretizar o projeto de um “jornal feito por uma empresa de jornalistas” que acreditavam que sua tarefa profissional era “não apenas descrever o mundo, mas ajudar a transformá-lo”.
Escrevendo na primeira pessoa do singular, o editor-chefe Raimundo Rodrigues Pereira explicava ao longo do editorial como, onde e por que nasceu a ideia de um jornal independente:
“Para mim, a viagem começa em 1968, o ano das agitações de maio da França, da invasão da Checoslováquia, da ofensiva do Tet no Vietnã do Sul e do Ato Institucional nº 5 e do fechamento do Congresso, no Brasil. Em 1968, no jornalismo brasileiro estava se fazendo a equipe de Veja e se desfazendo a equipe da Realidade (…) O fim da primeira equipe de Realidade se devia a um desses dilemas a que sistematicamente chega uma equipe que cria um jornal para uma empresa e que, com o passar do tempo, e com o sucesso da publicação, começa a acreditar que a publicação é dela, não do dono. O resultado da crise foi que a equipe saiu e o dono ficou”.
Na época, Realidade era a principal referência do bom jornalismo brasileiro, não apenas por suas reportagens, que desnudavam o País da ditadura militar, mas também pelo brilho e independência de sua redação, que se demitiu quando a interferência do patrão na vida da revista se tornou incontornável. Em parte, foi a partir da experiência em Realidade que nasceu o sonho do “jornal dos jornalistas”, das publicações sem patrão.
Raimundo Pereira em 1968 estava na revista Veja. Saiu em 1970, quando sentiu que não tinha mais condições de continuar seu trabalho. Em 1971 e 1972, comandou as edições especiais “Amazônia” e “Cidades” da revista Realidade. Nesse período, remanescentes da antiga equipe de Realidade, alimentando o desejo de autonomia, haviam criado a editora Arte & Comunicação, que fazia revistas independentes, Bondinho, Jornalivro, Grilo. Colaborador marginal dessa experiência, Raimundo imaginava a possibilidade de se fazer um jornal político junto ao pessoal da A&C.
No final de 1971 um grupo de editores e ex-editores da revista Realidade estava reunido em torno de um “boneco” (projeto gráfico) de Assuntos, uma publicação independente, a ser financiada em parte por seus editores. No grupo estavam quatro dos futuros editores de Movimento: Elifas Andreato, editor de arte da Abril Cultural, Dirceu Brisola, editor assistente de Veja no setor de política nacional, Antonio Carlos Ferreira (Tonico), jornalista e arquiteto, e eu.
Os quatro citados pelo editor-chefe faziam parte de um grupo maior, que incluía Eurico Andrade, repórter da equipe pioneira de Realidade, Dorrit Harazin, repórter da revista Veja, e Matias Molina, jornalista de Economia da Editora Abril. Juntos haviam concebido “Assuntos”, que Eurico Andrade imaginava como uma publicação de cunho político, um “Le Mondinho”, como dizia, referindo-se a uma combinação do “jornal dos jornalistas” dos franceses, o Le Monde, com o Bondinho dos brasileiros. Os dois grupos não chegaram a um acordo, a A&C faliu e a ideia ficou à espera de outras oportunidades.
Bernardo Kucinski, então amigo próximo de Raimundo, havia ido morar em Londres, onde conheceu o empresário Fernando Gasparian. Este também estava morando na capital inglesa, numa espécie de exílio, depois que seu amigo Rubens Paiva fora assassinado pela ditadura e ele mesmo sofrera ameaças de atentados. O empresário nacionalista queria fazer um jornal político no Rio de Janeiro. Kucinski mostrou-lhe um exemplar da edição do quarto aniversário de Veja, produzida por Raimundo a convite de Mino Carta, editor-chefe da revista, que, na apresentação, cobria Raimundo de elogios. Bernardo sugeriu que este fosse o editor do novo jornal. Gasparian reagiu positivamente.
A reação do grupo de Assuntos à proposta de Gasparian foi descrita detalhadamente no texto de Raimundo no número zero de Movimento:
“Bernardo me indicou para editor de Opinião, que era então uma espécie de The New Statesman brasileiro na cabeça de Fernando Gasparian; o grupo que pensava em Assuntos viu no convite boa oportunidade. O sentimento geral (…) era mais ou menos o seguinte: sentia-se um certo cansaço do jornalismo de grande empresa; acreditava-se que a tarefa do jornalista não é apenas a de descrever o mundo, mas de ajudar a transformá-lo; e que as grandes empresas jornalísticas tinham se acomodado a uma situação de censura progressiva que vinha asfixiando a imprensa brasileira há algum tempo. Mas havia obstáculos para um acordo com o empresário.
“O projeto de Opinião se atrasou um mês porque nós insistíamos em ter uma forma de assegurar a presença da redação em todas as decisões. Se queria ter pelo menos 49% das ações da empresa (…). Gasparian disse que não acreditava na possibilidade de sobrevivência de uma empresa que tivesse como donos muitos jornalistas. Garantiu que o fato de ele ter a propriedade jurídica de Opinião não significava que fosse dono das ideias do jornal. Concordou em fazer Opinião como um jornal que fosse propriedade intelectual de todos que o fizessem. Mas queria ter toda a propriedade jurídica.
A busca de alternativa foi infrutífera, prossegue o texto:
O grupo de Assuntos julgou que aquelas declarações não eram suficientes. Passou um mês procurando nova forma de capitalizar seu projeto. Não conseguiu; então tornou a procurar Gasparian.
Decidimos fazer Opinião nas bases propostas por Gasparian, para formar uma equipe e adquirir experiência até onde fosse possível. Depois, se a experiência fosse interrompida – uma possibilidade que já se antevia pelo fato de a redação não ter nenhum mecanismo de controle sobre o jornal – prosseguir com o projeto de ter uma empresa jornalística onde as pessoas que escrevessem, de fato e de direito, ou seja, também juridicamente, tivessedom o poder de decisão para garantir a observação de suas idéias. Opinião foi lançado em 23 de outubro de 1972, num coquetel ao qual Raimundo não compareceu, desagradando Gasparian logo de cara.
“Eu era muito purista, foi uma bobagem”, reconheceu o jornalista depois. O jornal foi pioneiro por se apresentar abertamente de oposição à ditadura, embora fortemente censurado, além de ser um exemplo de respeito à independência da redação. Como Raimundo reconheceu no texto do número zero de Movimento: Durante os 121 números em que a equipe de jornalistas que se organizou em torno daqueles editores do projeto de Assuntos esteve em Opinião, os termos do acordo com Fernando Gasparian foram cumpridos: o dono do jornal não foi simultaneamente o dono das suas idéias, mas concordou, ele também, em submeter à discussão da redação suas ideias e editoriais. Até que sobreveio a demissão do editor. O sonho do jornal independente esteve todo tempo vivo na redação de Opinião como se percebe em uma entrevista concedida por Raimundo, às vésperas do lançamento de Movimento, para outro jornal independente, o Ex, quando fez um balanço do desempenho de sua equipe em Opinião:
“A principal coisa: nós desmentimos a grande imprensa. A primeira fase de Opinião foi a fase de demonstrar o que as grandes publicações não faziam, porque tinham escolhido a estratégia da adesão. Afinal é um jornal feito com 300 mil cruzeiros (capital inicial, equivalente a 916 mil reais de 20111) e que colocou a política em primeiro lugar. E só porque para lá convergiam alguns jornalistas independentes, mais uma série de intelectuais que não tinham outro lugar para escrever, em pouco tempo Opinião estava concorrendo nas bancas com as grandes publicações”.
O novo semanário foi um sucesso de vendas, segundo a entrevista:
“Opinião, até o número 24, foi de 28 mil pra perto de 38 mil exemplares vendidos. Veja estava vendendo pouco mais de 40 mil nas bancas, e Visão, nas bancas, vendia perto de 10 mil. A redação do Opinião chegou a ser uma das maiores do País, em termos de esforços mobilizados a favor dela. Fora do País, era um negócio maior ainda: tinha o Robert Kennedy mandando entrevistas, tinha essas grandes publicações estrangeiras cedendo direitos pro Opinião só porque o Opinião resistia à censura”.
Raimundo concluía com uma avaliação positiva: “Fizemos 121 edições em 2 anos e três meses, mais 2 meses de preparação. Total de 2 anos e meio de trabalho no Opinião. Mais ou menos o tempo que durou a equipe de Realidade, um grande tempo.”2
A POLÊMICA DA DEMISSÃO
No dia 18 de fevereiro de 1975, Fernando Gasparian havia demitido o editor chefe Raimundo Pereira, alegando “problemas pessoais”, como reafirmaria na nota publicada na edição 122 de Opinião, na semana seguinte. A redação, que havia participado da fundação do semanário e contribuído para seu indiscutível sucesso, considerou a atitude incompatível com os princípios do jornal e a grande maioria se demitiu, sem deixar de fornecer sua própria versão do episódio: em uma nota lida na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a equipe insistia no conteúdo político da demissão em um momento delicado, quando se discutia o significado da distensão prometida pelo presidente Ernesto Geisel.
Alguns episódios vinham desgastando as relações entre Gasparian e o editor-chefe. Um exemplo foi a matéria publicada em dezembro do ano anterior na seção de política, como parte de um conjunto de perfis dos deputados do MDB eleitos em novembro. O texto relatava que o deputado Marcos Tito, do MDB mineiro, havia feito campanha se apresentando como “autêntico” e depois de eleito recusou essa condição, decepcionando os estudantes que o haviam apoiado. Gasparian não costumava interferir no trabalho editorial, mas considerou a matéria uma provocação (a redação não sabia, mas ele dera apoio material à campanha de Marcos Tito) e exigiu que o responsável, Luiz Bernardes, da sucursal de Belo Horizonte, fosse demitido. Raimundo foi investigar os fatos e concluiu que Bernardes havia escrito a nota “jornalisticamente” e se recusou a demiti-lo.
Outro episódio desgastante: o governo não se limitava à censura para tentar inviabilizar Opinião. Fernando Gasparian aprendeu isso quando se deu conta de que estava sendo de diversas maneiras boicotado pelo governo. Ficou indignado quando bancos oficiais como o Banco do Brasil recusaram-se a aceitar duplicatas da Editora Inúbia, que editava o jornal. Acabou por apelar para José Aparecido, que era representante do banqueiro e senador Magalhães Pinto, presidente da Arena, o partido do governo e um dos líderes destacados do regime. Ele era dono do Banco Nacional e foi por meio dessas relações pessoais que Gasparian conseguiu descontar suas duplicatas. Uma crítica feita pelos jornalistas de Opinião a Magalhães Pinto (sua cabeça teria a forma de um joelho) pode ter colocado Gasparian em dificuldades com o seu único banqueiro.
“FOI A QUESTÃO DO GEISEL”
O texto de Raimundo no número zero de Movimento citava sete incidentes entre o dono do jornal e ele. Mas antes sempre haviam chegado a um acordo, quase sempre intermediado por amigos de Gasparian e colaboradores como o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, e um editor da Editora Abril, Pedro Paulo Popovic. Algumas vezes, a redação assumia o erro, como ocorreu quando uma matéria sobre um show de Chico Buarque e Caetano Veloso reproduziu palavrões ditos pelos artistas. “Nós vamos ser fechados por ter publicado um palavrão, isso é um absurdo!”, reagiu Gasparian. Às vezes era Gasparian quem cedia, como aconteceu quando pediu a Raimundo para ler as matérias antes de serem publicadas. “Respondi: ‘Então você põe outro editor, porque esse é o meu papel’, e ele voltou atrás”, lembra Raimundo.4
Para o ex-editor-chefe de Opinião, porém, não foram esses incidentes que provocaram a demissão. Gasparian sabia que todos, inclusive os militares, o consideravam pessoalmente responsável pelo que era publicado no jornal, mesmo quando estava em desacordo com a redação, como ocorria frequentemente quando o tema era a distensão promovida por Geisel:
“A briga mesmo foi a questão do Geisel, que Gasparian dizia ser nacionalista, e nossa postura colocando em dúvida a distensão prometida por ele”, opina Raimundo. “Nós fizemos duas matérias bem fortes para mostrar quem era Geisel de fato: uma, dos votos de Geisel quando era ministro no Superior Tribunal Militar (STM), e outra, sobre a política de exploração de petróleo da Petrobras. E o Gasparian queria pôr anúncio da Petrobras de graça no Opinião!”, lembra o ex-editor-chefe.
“Nós não tínhamos a menor dúvida do caráter político da demissão, porque não estávamos fazendo isso de ingênuos.
“Tínhamos uma posição política, estávamos disputando a orientação do jornal. Chegamos a dizer: ‘Nós também somos donos do jornal’, o que é uma ficção mas também tem a ver. O jornal não saiu daquele jeito da cabeça do Gasparian. Foi resultado de uma mobilização mais ampla, onde ele teve um papel ultra importante como criador do jornal, com o peso de seu nome, trazendo as grandes figuras que deram prestígio ao jornal”.5
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso lembra hoje que tentou interceder:
“Eu sempre fui contrário ao divisionismo. (…) Tem que juntar, sempre foi a minha opinião, na vida, tem que agregar, não separar. Mas é muito difícil, porque ali tinha concepções políticas diferentes. Na verdade, o Opinião, na medida em que o Gasparian tinha influência, era um jornal mais nacionalista e mais interessado na questão institucional; enquanto que o Movimento era muito mais de participação ampliada, mais popular, essa coisa toda, e a questão nacional não era tão dramática quanto a questão social. Mas todos estavam no mesmo lado, estou dizendo aqui nuances”.
AINDA A DEMISSÃO
O momento era delicado também para a redação de Opinião, traumatizada por deixar o jornal, como lembra Flávio de Carvalho, que foi editor de Internacional do semanário.
“O Raimundo chegou na redação e disse: ‘Acabou’ Foi uma grande comoção… Estava terminando uma coisa em que todo mundo estava investindo, virava a noite fazendo o jornal, enfrentava a censura, era um sacrifício danado. Aquilo era a vida de todo mundo, a gente morava no Rio e ninguém ia à praia, o máximo de farra era comer pizza no (restaurante) Guanabara. Mas ali mesmo, já naquela reunião, combinamos que íamos tentar fazer outro jornal, em São Paulo”.7
Além de superar o trauma e enfrentar a aventura de fazer um novo jornal sem os recursos financeiros e o respaldo político e intelectual de Gasparian, a redação enfrentava críticas de que estaria dividindo o movimento de resistência à ditadura.
Na entrevista citada, Fernando Henrique Cardoso lembrou: “No primeiro momento, fiquei contra dividir. Pra que dividir?” Ele achava que podia pôr em risco o Opinião e não conseguir concretizar uma alternativa. (Poderia) ficar sem instrumento, sem a força do Opinião. Ficar sem um instrumento qualquer. Mas depois, dado que era inevitável, fiquei nos dois. Fui do conselho dos dois, escrevia nos dois…”
Daí a preocupação de Raimundo no texto do número zero de Movimento em demonstrar que haviam feito tudo o que podiam para reverter a decisão de Gasparian – “as discussões com Gasparian se prolongaram ao longo de vários dias” – e que as previsões de FHC não se confirmariam:
“A possibilidade de transformar a crise em um acontecimento criativo para o País surgiu quando nós decidimos fazer Movimento e, além disso, quando a maioria da equipe se convenceu de que, a despeito de o dono do jornal ter tomado uma decisão fundamentalmente errada, se devia lutar por Opinião, ajudando-o a conservar princípios duramente conquistados”.
Raimundo repetiu em entrevista em outubro de 2009 que a redação fez tudo o que pôde para manter-se em Opinião, oferecendo primeiro a possibilidade de formar uma comissão para editar o jornal e depois outro nome do time para substituir o editor-chefe:
“Eu estou quase certo que houve até o seguinte: o cara de quem o Gasparian gostava pessoalmente era o Marcos Gomes (…). Eu já sou meio avacalhado hoje, se vocês me vissem na época, eu ia com uma bermuda, dormia no meio da minha sala com uma lauda com um buraco para deixar o nariz pra fora… E o Marcos estava sempre bem vestido, era um sujeito muito mais político, tinha sido dirigente da UNE, tinha política na cabeça, conversava muito com o Gasparian. Já nós éramos jornalistas e, assim, tinha uma coisa meio liberal anarquista, né?”
Marcos Gomes opina que “a diferença se dava primeiro talvez por minha experiência política. Eu, ainda que fosse uma pessoa muito jovem, o via (Gasparian) claramente como um aliado. E eu não estava a fim de escandalizá-lo de nenhuma maneira. Quer dizer, era um escândalo para ele o Raimundo ir para a redação de bermuda, toda esfiapada (…) Então, eu tinha uma boa interlocução com ele. Uma interlocução educada, desde cumprimentá-lo”.
Luis Marcos Magalhães Gomes, então com 27 anos, de fato, já acumulara considerável experiência política. Havia tido intensa militância no movimento estudantil em Belo Horizonte. Foi eleito vice-presidente da UNE em 1966. Entrou para Ação Popular (AP), se deslocou para o meio operário, participou da organização das greves dos metalúrgicos de 1968 em Minas Gerais escrevendo jornais para os operários. Preso diversas vezes, transferiu-se para São Paulo, onde participou da direção regional da AP. Preso outra vez em 1969, acusado em 22 processos, condenado a uma pena de 4 anos, foi cumpri-la no presídio Tiradentes. Teve sua pena reduzida e foi libertado após 20 meses, em setembro de 1971. Ao sair, vigiado pelos órgãos de repressão, encontrou dificuldades para retomar a militância em Ação Popular, foi trabalhar como redator em uma agência de publicidade no Rio de Janeiro. Em 1972, seu irmão Frederico o apresentou a Raimundo Pereira, que o convidou para trabalhar em Opinião. Junto com Raimundo e Tonico, ele iria formar o trio de jornalistas que “tocava” o dia a dia na redação. Raimundo declarou em entrevista que Marcos “foi muito importante em Opinião no enfoque político mais adequado para as matérias, na definição das pautas e nos entendimentos com Gasparian”.
Sobre os motivos para a demissão de Raimundo, Marcos sugere:
“Acho que foram as duas coisas, ele (Gasparian) foi se irritando com a relação e também houve a questão da conjuntura política. O País marchando com o Geisel, o jornal numa situação financeira complicada. Acho que ele não via ali sobretudo a flexibilidade que ele estava buscando. E, quando ele propôs aquela história de publicar anúncios gratuitos da Petrobras, a redação não topou. Quer dizer, você está ali naquela resistência desgraçada, fizemos aquelas matérias sobre o governo Geisel, pegamos todos os votos dele (no STM), o cara só votava contra todo mundo. Chamar o cara de democrata nacionalista era só o que nos faltava. A redação se rebelou”.
Gasparian achou que Marcos podia substituir Raimundo: Então, Gasparian conversou comigo: “Mas por que só pode ser o Raimundo? Por que você, por exemplo, não pode editar o jornal?” Eu falei: “Fernando, você não conhece a redação que trabalha com você, porque ninguém aqui vai se dispor a substituir o Raimundo. Tem unidade tranquila em torno disso, se você vier com essa proposta, vai ser um desastre. Não tem a menor possibilidade de eu substituir o Raimundo”.9
Com a saída de Raimundo e da equipe, Opinião passou a ser editado pelo jornalista Argemiro Ferreira, que permaneceu no cargo até junho de 1976. Foi sucedido pelo próprio Gasparian, que assumiu o comando da redação e nele se manteve até abril de 1977, quando decidiu fechar o jornal, por não suportar mais a censura implacável e o boicote financeiro.
3 mil filmes para ver no YouTube
O YouTube disponibilizou um canal com aproximadamente três mil filmes on-line. O projeto, que havia sido descontinuado, voltou ao ar no mês de agosto. A lista traz desde clássicos absolutos, que fizeram a história do cinema na primeira metade do século passado, até filmes recentes que ficaram famosos em festivais independentes. O canal também traz filmes “trash” do cinema indiano, jamaicano e nigeriano. Todos os filmes estão em inglês, mas legendas em 30 idiomas podem ser ativadas no próprio Youtube. Alguns destaques do canal: “O Nascimento de Uma Nação”, filme mudo estadunidense de 1915 co-escrito, coproduzido e dirigido por D. W. Griffith, baseado no romance “The Clansman”, de Thomas Dixon. “O Gabinete do Doutor Caligari”, a primeira grande obra do expressionismo alemão, dirigido por Robert Wiene em 1920. “Nosferatu”, de F. W. Murnau, outro clássico do expressionismo alemão, realizado em 1922. “O Encouraçado Potemkin”, de Sergei Eisenstein, filme soviético de 1925 que retrata a revolução russa de 1905. “A General”, a obra-prima de Buster Keaton, realizado em 1927. “M”, o primeiro filme do cineasta alemão Fritz Lang e um dos filmes mais influentes da história do cinema. “Daqui a Cem Anos”, de Alexander Korda, produzido em 1936 e considerado a primeira superprodução de ficção científica da história; e “O Estranho”, drama noir escrito, dirigido e estrelado por Orson Welles em 1946. O canal também traz clássicos recentes como “Slacker”, de 1991, filme de estreia de Richard Linklater; o premiadíssimo “Pão e Tulipas”', realizado em 2000, pelo diretor italiano Silvio Soldini; e “The Conspirator”, filme independente de Robert Redford, produzido em 2010, que narra o julgamento de Mary Surratt, mãe de um dos homens que ajudou a planejar o assassinato de Abraham Lincoln. Outro destaque do canal é o documentário “Home”, do fotógrafo francês Yann Arthus-Bertrand, que retrata a terra por meio da visão de um pássaro, sobrevoando mais de 50 países e mostrando as fragilidades do planeta. Para acessar: http://bit.ly/nacjoa
O YouTube disponibilizou um canal com aproximadamente três mil filmes on-line. O projeto, que havia sido descontinuado, voltou ao ar no mês de agosto. A lista traz desde clássicos absolutos, que fizeram a história do cinema na primeira metade do século passado, até filmes recentes que ficaram famosos em festivais independentes. O canal também traz filmes “trash” do cinema indiano, jamaicano e nigeriano. Todos os filmes estão em inglês, mas legendas em 30 idiomas podem ser ativadas no próprio Youtube. Alguns destaques do canal: “O Nascimento de Uma Nação”, filme mudo estadunidense de 1915 co-escrito, coproduzido e dirigido por D. W. Griffith, baseado no romance “The Clansman”, de Thomas Dixon. “O Gabinete do Doutor Caligari”, a primeira grande obra do expressionismo alemão, dirigido por Robert Wiene em 1920. “Nosferatu”, de F. W. Murnau, outro clássico do expressionismo alemão, realizado em 1922. “O Encouraçado Potemkin”, de Sergei Eisenstein, filme soviético de 1925 que retrata a revolução russa de 1905. “A General”, a obra-prima de Buster Keaton, realizado em 1927. “M”, o primeiro filme do cineasta alemão Fritz Lang e um dos filmes mais influentes da história do cinema. “Daqui a Cem Anos”, de Alexander Korda, produzido em 1936 e considerado a primeira superprodução de ficção científica da história; e “O Estranho”, drama noir escrito, dirigido e estrelado por Orson Welles em 1946. O canal também traz clássicos recentes como “Slacker”, de 1991, filme de estreia de Richard Linklater; o premiadíssimo “Pão e Tulipas”', realizado em 2000, pelo diretor italiano Silvio Soldini; e “The Conspirator”, filme independente de Robert Redford, produzido em 2010, que narra o julgamento de Mary Surratt, mãe de um dos homens que ajudou a planejar o assassinato de Abraham Lincoln. Outro destaque do canal é o documentário “Home”, do fotógrafo francês Yann Arthus-Bertrand, que retrata a terra por meio da visão de um pássaro, sobrevoando mais de 50 países e mostrando as fragilidades do planeta. Para acessar: http://bit.ly/nacjoa
segunda-feira, 16 de julho de 2012
Kassab retira nome de militar de viaduto
O tributo a Tavares de Souza foi feito em 1981, destacando a ‘efetiva participação do general no movimento revolucionário de 1964’
SÃO PAULO - Julho de 1981. O prefeito Reynaldo de Barros publica um decreto batizando uma ponte sobre o Rio Tietê em homenagem a um figurão da ditadura militar. Passam-se 31 anos e 11 administrações municipais, intercaladas por uma troca de regime de governo. Julho de 2012. O prefeito Gilberto Kassab (PSD) promulga uma lei que tira da ponte o nome dado pelo antecessor. Com a canetada, divulgada no sábado, faz o general Milton Tavares de Souza perder mais um logradouro que recebia o seu nome: o viaduto entre a Penha, na zona leste, e a Vila Maria, na norte.
O general Milton Tavares da Souza com o então governador Paulo MalufA estrutura, agora, se chama Domingos Franciulli Netto, em memória de um ministro do Superior Tribunal de Justiça morto em 2005. No ano passado, Kassab orientou a base aliada a aprovar o projeto na Câmara Municipal. Ele vinha sendo pressionado por antigos presos políticos e pelo PCdoB a realizar a mudança, proposta pelo ex-prefeito e hoje candidato ao cargo José Serra (PSDB).
O engenheiro Ivo Herzog, filho do jornalista Vladimir Herzog (1937-1975), encontrado enforcado nos porões da ditadura, é contra a alteração. "Não devemos apagar os nomes ruins, dos que foram vilões. Essas pessoas tiveram um papel, por pior que tenham sido. E devemos conhecê-lo, até para que não volte a acontecer." Ele defende também que opositores daquele regime virem logradouros, como o jornalista Perseu Abramo (1929-1996).
'Extremas dúvidas'
Não é uma ação sem importância nomear um endereço. Por isso, só figuras de projeção histórica e social devem inspirar homenagens. É o que diz a historiadora Maria Aparecida de Aquino, professora da Universidade de São Paulo (USP). "Esse general é uma figura sobre a qual pairam extremas dúvidas. Na época, quando a ditadura perdia força, parte da sociedade questionava se o viaduto devia receber o nome, pela relevância e os aspectos da sua contribuição."
Crítico feroz do comunismo, perseguidor de guerrilheiros no Araguaia e suposto mentor de sessões de tortura, "Miltinho", como era chamado, esteve no rol dos mais linha-dura dos anos de chumbo. Nascido em Niterói (RJ), estudou no Colégio Militar. Cinco anos após o golpe de 1964, virou general. Ao morrer de ataque cardíaco em junho de 1981, aos 64 anos, comandava o 2.º Exército.
Tavares de Souza também foi homenageado como nome de rodovia. Porém, em 2010, a SP-332, na região de Campinas, deixou de ser assim denominada, passando a se chamar Professor Zeferino Vaz. Mas nem tudo está perdido para o militar. Uma praça na Vila Maria ainda conserva o seu nome. Só resta saber até quando.
15 de julho de 2012 20h 56
Arquivo AE1980
O tributo a Tavares de Souza foi feito em 1981, destacando a ‘efetiva participação do general no movimento revolucionário de 1964’
SÃO PAULO - Julho de 1981. O prefeito Reynaldo de Barros publica um decreto batizando uma ponte sobre o Rio Tietê em homenagem a um figurão da ditadura militar. Passam-se 31 anos e 11 administrações municipais, intercaladas por uma troca de regime de governo. Julho de 2012. O prefeito Gilberto Kassab (PSD) promulga uma lei que tira da ponte o nome dado pelo antecessor. Com a canetada, divulgada no sábado, faz o general Milton Tavares de Souza perder mais um logradouro que recebia o seu nome: o viaduto entre a Penha, na zona leste, e a Vila Maria, na norte.
O general Milton Tavares da Souza com o então governador Paulo MalufA estrutura, agora, se chama Domingos Franciulli Netto, em memória de um ministro do Superior Tribunal de Justiça morto em 2005. No ano passado, Kassab orientou a base aliada a aprovar o projeto na Câmara Municipal. Ele vinha sendo pressionado por antigos presos políticos e pelo PCdoB a realizar a mudança, proposta pelo ex-prefeito e hoje candidato ao cargo José Serra (PSDB).
O engenheiro Ivo Herzog, filho do jornalista Vladimir Herzog (1937-1975), encontrado enforcado nos porões da ditadura, é contra a alteração. "Não devemos apagar os nomes ruins, dos que foram vilões. Essas pessoas tiveram um papel, por pior que tenham sido. E devemos conhecê-lo, até para que não volte a acontecer." Ele defende também que opositores daquele regime virem logradouros, como o jornalista Perseu Abramo (1929-1996).
'Extremas dúvidas'
Não é uma ação sem importância nomear um endereço. Por isso, só figuras de projeção histórica e social devem inspirar homenagens. É o que diz a historiadora Maria Aparecida de Aquino, professora da Universidade de São Paulo (USP). "Esse general é uma figura sobre a qual pairam extremas dúvidas. Na época, quando a ditadura perdia força, parte da sociedade questionava se o viaduto devia receber o nome, pela relevância e os aspectos da sua contribuição."
Crítico feroz do comunismo, perseguidor de guerrilheiros no Araguaia e suposto mentor de sessões de tortura, "Miltinho", como era chamado, esteve no rol dos mais linha-dura dos anos de chumbo. Nascido em Niterói (RJ), estudou no Colégio Militar. Cinco anos após o golpe de 1964, virou general. Ao morrer de ataque cardíaco em junho de 1981, aos 64 anos, comandava o 2.º Exército.
Tavares de Souza também foi homenageado como nome de rodovia. Porém, em 2010, a SP-332, na região de Campinas, deixou de ser assim denominada, passando a se chamar Professor Zeferino Vaz. Mas nem tudo está perdido para o militar. Uma praça na Vila Maria ainda conserva o seu nome. Só resta saber até quando.
15 de julho de 2012 20h 56
Arquivo AE1980
Por ganhar “apenas” R$18 mil de pensão, Rosane detona Collor
Em entrevista ao Fantástico, Rosane Collor, que quer receber mais do que os atuais R$18 mil, diz que o ex-marido fez macumba nos porões da Casa da Dinda para chegar à presidência; segundo o jornalista Luís Nassif, é retaliação da Globo por Collor defender um capítulo da mídia na CPI do Cachoeira
Via Brasil 247
Anunciada com estardalhaço pela Rede Globo, a entrevista de Rosane Collor, ex-mulher do ex-presidente e senador Fernando Collor, ao programa Fantástico, não passou de um traque. Resumidamente, Rosane afirmou que Collor fez rituais de macumba para chegar ao poder e tentar se proteger dos inimigos. Além disso, no depoimento à jornalista Renata Ceribelli, Rosane afirmou que o ex-tesoureiro de Collor, Paulo César Farias, frequentava a Casa da Dinda, residência do então presidente em Brasília. “Depois, quando surgiram as primeiras denúncias, isso parou”, disse ele.
A primeira crise conjugal do casal ocorreu porque Rosane teria se negado a aceitar indicados de PC Farias na Legião Brasileira de Assistência. Sobre a morte misteriosa do ex-tesoureiro de campanha, Rosane foi enfática. “Estávamos no Taiti e acredito que o Fernando não tenha envolvimento com a morte do PC”, afirma.
O interesse de Rosane em falar sobre o ex-marido tem uma razão. Convertida à religião evangélica, ela está lançando um livro sobre sua passagem por Brasília. Perguntada se ela acreditava em coincidência, a neo-evangélica respondeu: “Eu não acredito em coincidência, acredito em Jesuscidência.” Além disso, considera baixa sua pensão de R$18 mil. “Tenho amigas que recebem R$40 mil e que os ex-maridos não foram presidentes”. Mas, e a Globo? Por que tanto estardalhaço diante de uma entrevista tão pífia?
De acordo com o jornalista Luis Nassif tudo não passou de uma retaliação devido ao fato de Collor ser a voz mais contundente na defesa de um capítulo dedicado à mídia na CPI do Cachoeira. Eis o vídeo que, segundo Nassif, teria motivado a retaliação.
Em entrevista ao Fantástico, Rosane Collor, que quer receber mais do que os atuais R$18 mil, diz que o ex-marido fez macumba nos porões da Casa da Dinda para chegar à presidência; segundo o jornalista Luís Nassif, é retaliação da Globo por Collor defender um capítulo da mídia na CPI do Cachoeira
Via Brasil 247
Anunciada com estardalhaço pela Rede Globo, a entrevista de Rosane Collor, ex-mulher do ex-presidente e senador Fernando Collor, ao programa Fantástico, não passou de um traque. Resumidamente, Rosane afirmou que Collor fez rituais de macumba para chegar ao poder e tentar se proteger dos inimigos. Além disso, no depoimento à jornalista Renata Ceribelli, Rosane afirmou que o ex-tesoureiro de Collor, Paulo César Farias, frequentava a Casa da Dinda, residência do então presidente em Brasília. “Depois, quando surgiram as primeiras denúncias, isso parou”, disse ele.
A primeira crise conjugal do casal ocorreu porque Rosane teria se negado a aceitar indicados de PC Farias na Legião Brasileira de Assistência. Sobre a morte misteriosa do ex-tesoureiro de campanha, Rosane foi enfática. “Estávamos no Taiti e acredito que o Fernando não tenha envolvimento com a morte do PC”, afirma.
O interesse de Rosane em falar sobre o ex-marido tem uma razão. Convertida à religião evangélica, ela está lançando um livro sobre sua passagem por Brasília. Perguntada se ela acreditava em coincidência, a neo-evangélica respondeu: “Eu não acredito em coincidência, acredito em Jesuscidência.” Além disso, considera baixa sua pensão de R$18 mil. “Tenho amigas que recebem R$40 mil e que os ex-maridos não foram presidentes”. Mas, e a Globo? Por que tanto estardalhaço diante de uma entrevista tão pífia?
De acordo com o jornalista Luis Nassif tudo não passou de uma retaliação devido ao fato de Collor ser a voz mais contundente na defesa de um capítulo dedicado à mídia na CPI do Cachoeira. Eis o vídeo que, segundo Nassif, teria motivado a retaliação.
O tratamento que a mídia deu à morte do cardeal dom Eugenio Sales, ocorrida na última segunda-feira, com direito à pomba branca no velório, me fez lembrar o filme alemão "Uma cidade sem passado", de 1990, dirigido por Michael Verhoven. Os dois casos são exemplos típicos de como o poder manipula as versões sobre a história, promove o esquecimento de fatos vergonhosos, inventa despudoradamente novas lembranças e usa a memória, assim construída, como um instrumento de controle e coerção.
O filme
Comecemos pelo filme, que se baseia em fatos históricos. Na década de 1980, o Ministério da Educação da Alemanha realiza um concurso de redação escolar, de âmbito nacional, cujo tema é "Minha cidade natal na época do III Reich". Milhares de estudantes se inscrevem, entre eles a jovem Sônia Rosenberger, que busca reconstituir a história de sua cidade, Pfilzing - como é denominada no filme - considerada até então baluarte da resistência antinazista.
Mas a estudante encontra oposição. As instituições locais de memória - o arquivo municipal, a biblioteca, a igreja e até mesmo o jornal Pfilzinger Morgen - fecham-lhe suas portas, apresentando desculpas esfarrapadas. Ninguém quer que uma "judia e comunista" futuque o passado. Sônia, porém, não desiste. Corre atrás. Busca os documentos orais. Entrevista pessoas próximas, familiares, vizinhos, que sobreviveram ao nazismo. As lembranças, contudo, são fragmentadas, descosturadas, não passam de fiapos sem sentido.
A jovem pesquisadora procura, então, as autoridades locais, que se recusam a falar e ainda consideram sua insistência como uma ameaça à manutenção da memória oficial, que é a garantia da ordem vigente. Por não ter acesso aos documentos, Sônia perde os prazos do concurso. Desconfiada, porém, de que debaixo daquele angu tinha caroço - perdão, de que sob aquele chucrute havia salsicha - resolve continuar pesquisando por conta própria, mesmo depois de formada, casada e com filhos, numa batalha desigual que durou alguns anos.
Hostilizada pelo poder civil e religioso, Sônia recorre ao Judiciário e entra com uma ação na qual reivindica o direito à informação. Ganha o processo e, finalmente, consegue ingressar nos arquivos. Foi aí, no meio da papelada, que ela descobriu, horrorizada, as razões da cortina de silêncio: sua cidade, longe de ter sido um bastião da resistência ao nazismo, havia sediado um campo de concentração. Lá, os nazistas prenderam, torturaram e mataram muita gente, com a cumplicidade ou a omissão de moradores, que tentaram, depois, apagar essa mancha vergonhosa da memória, forjando um passado que nunca existiu.
Os documentos registraram inclusive a prisão de um judeu, denunciado na época por dois padres, que no momento da pesquisa continuavam ainda vivos, vivíssimos, tentando impedir o acesso de Sônia aos registros. No entanto, o mais doloroso, era que aqueles que, ontem, haviam sido carrascos, cúmplices da opressão, posavam, hoje, como heróis da resistência e parceiros da liberdade. Quanto escárnio! Os safados haviam invertido os papéis. Por isso, ocultavam os documentos.
Deus tá vendo
E é aqui que entra a forma como a mídia cobriu a morte do cardeal dom Eugênio Sales, que comandou a Arquidiocese do Rio, com mão forte, ao longo de 30 anos (1971-2001), incluindo os anos de chumbo da ditadura militar. O que aconteceu nesse período? O Brasil já elegeu três presidentes que foram reprimidos pela ditadura, mas até hoje, não temos acesso aos principais documentos da repressão.
Se a Comissão Nacional da Verdade, instalada em maio último pela presidente Dilma Rousseff, pudesse criar, no campo da memória, algo similar à operação "Deus tá vendo", organizada pela Policia Civil do Rio Grande do Sul, talvez encontrássemos a resposta. Na tal operação, a Polícia prendeu na última quinta-feira quatro pastores evangélicos envolvidos em golpes na venda de automóveis. Seria o caso de perguntar: o que foi que Deus viu na época da ditadura militar?
Tem coisas que até Ele duvida. Tive a oportunidade de acompanhar a trajetória do cardeal Eugênio Sales, na qualidade de repórter da ASAPRESS, uma agência nacional de notícias arrendada pela CNBB em 1967. Também, cobri reuniões e assembleias da Conferência dos Bispos para os jornais do Rio - O Sol, O Paiz e Correio da Manhã, quando dom Eugênio era Arcebispo Primaz de Salvador. É a partir desse lugar que posso dar um modesto testemunho.
Os bispos que lutavam contra as arbitrariedades eram Helder Câmara, Waldir Calheiros, Cândido Padin, Paulo Evaristo Arns e alguns outros mais que foram vigiados e perseguidos. Mas não dom Eugênio, que jogava no time contrário. Um dos auxiliares de dom Helder, o padre Henrique, foi torturado até a morte em 1969, num crime que continua atravessado na garganta de todos nós e que esperamos seja esclarecido pela Comissão da Verdade. Padres e leigos foram presos e torturados, sem que escutássemos um pio de protesto de dom Eugênio, contrário à teologia da libertação e ao envolvimento da Igreja com os pobres.
O cardeal Eugenio Sales era um homem do poder, que amava a pompa e o rapapé, muito atuante no campo político. Foi ele um dos inspiradores das "candocas" - como Stanislaw Ponte Preta chamava as senhoras da CAMDE, a Campanha da Mulher pela Democracia. As "candocas" desenvolveram trabalhos sociais nas favelas exclusivamente com o objetivo de mobilizar setores pobres para seus objetivos golpistas. Foram elas, as "candocas", que organizaram manifestações de rua contra o governo democraticamente eleito de João Goulart, incluindo a famigerada "Marcha da família com Deus pela liberdade", que apoiou o golpe militar, com financiamento de multinacionais, o que foi muito bem documentado pelo cientista político René Dreifuss, em seu livro "1964: A Conquista do Estado" (Vozes, 1981). Ele teve acesso ao Caixa 2 do IPES/IBAD.
Nós, toda a torcida do Flamengo e Deus que estava vendo tudo, sabíamos que dom Eugênio era, com todo o respeito, o cardeal da ditadura. Se não sofro de amnésia - e não sofro de amnésia ou de qualquer doença neurodegenerativa - posso garantir que na época ele nem disfarçava, ao contrário manifestava publicamente orgulho do livre trânsito que tinha entre os militares e os poderosos.
- "Quem tem dúvidas...basta pesquisar os textos assinados por ele no JB e n'O Globo" - escreve a jornalista Hildegard Angel, que foi colunista dos dois jornais e avaliou assim a opção preferencial do cardeal:
- A Igreja Católica, no Rio, sob a égide de dom Eugenio Salles, foi cada vez mais se distanciando dos pobres e se aproximando, cultivando, cortejando as estruturas do poder. Isso não poderia acabar bem. Acabou no menor percentual de católicos no país: 45,8%...
Portões do Sumaré
Por isso, a jornalista estranhou - e nós também - a forma como o cardeal Eugenio Sales foi retratado no velório pelas autoridades. Ele foi apresentado como um combatente contra a ditadura, que abriu os portões da residência episcopal para abrigar os perseguidos políticos. O prefeito Eduardo Paes, em campanha eleitoral, declarou que o cardeal "defendeu a liberdade e os direitos individuais". O governador Sérgio Cabral e até o presidente do Senado, José Sarney, insistiram no mesmo tema, apresentando dom Eugênio como o campeão "do respeito às pessoas e aos direitos humanos".
Não foram só os políticos. O jornalista e acadêmico Luiz Paulo Horta escreveu que dom Eugênio chegou a abrigar no Rio "uma quantidade enorme de asilados políticos", calculada, por baixo, numa estimativa do Globo, em "mais de quatro mil pessoas perseguidas por regimes militares da América do Sul". Outro jornalista, José Casado, elevou o número para cinco mil. Ou seja, o cardeal era um agente duplo. Publicamente, apoiava a ditadura e, por baixo dos panos, na clandestinidade, ajudava quem lutava contra. Só faltou arranjarem um codinome para ele, denominado pelo papa Bento XVI como "o intrépido pastor".
Seria possível acreditar nisso, se o jornal tivesse entrevistado um por cento das vítimas. Bastaria 50 perseguidos nos contarem como o cardeal com eles se solidarizou. No entanto, o jornal não dá o nome de uma só - umazinha - dessas cinco mil pessoas. Enquanto isto não acontecer, preferimos ficar com o corajoso depoimento de Hildegard Angel, cujo irmão Stuart, foi torturado e morto pelo Serviço de Inteligência da Aeronáutica. Sua mãe, a estilista Zuzu Angel, procurou o cardeal e bateu com a cara na porta do palácio episcopal.
Segundo Hilde, dom Eugênio "fechou os olhos às maldades cometidas durante a ditadura, fechando seus ouvidos e os portões do Sumaré aos familiares dos jovens ditos "subversivos" que lá iam levar suas súplicas, como fez com minha mãe Zuzu Angel (e isso está documentado)". Ela acha surpreendente que os jornais queiram nos fazer acreditar "que ocorreu justo o contrário!", como no filme "Uma cidade sem passado".
Mas não é tão surpreendente assim. O texto de Hildegard menciona a grande habilidade, em vida, de dom Eugenio, em "manter ótimas relações com os grandes jornais, para os quais contribuiu regularmente com artigos". As azeitadas relações com os donos dos jornais e com alguns jornalistas em postos-chave continuaram depois da morte, como é possível constatar com a cobertura do velório. A defesa de dom Eugênio, na realidade, funciona aqui como uma autodefesa da mídia e do poder.
Os jornais elogiaram, como uma virtude e uma delicadeza, o gesto do cardeal Eugenio Sales que cada vez que ia a Roma levava mamão-papaia para o papa João Paulo II, com o mesmo zelo e unção com que o senador Alfredo Nascimento levava tucumã já descascado para o café da manhã do então governador Amazonino Mendes. São os rituais do poder com seus rapapés.
- Dentro de uma sociedade, assim como os discursos, as memórias são controladas e negociadas entre diferentes grupos e diferentes sistemas de poder. Ainda que não possam ser confundidas com a "verdade", as memórias têm valor social de "verdade" e podem ser difundidas e reproduzidas como se fossem "a verdade" - escreve Teun A. van Dijk, doutor pela Universidade de Amsterdã.
A "verdade" construída pela mídia foi capaz de fotografar até "a presença do Espírito Santo" no funeral. Um voluntário da Cruz Vermelha, Gilberto de Almeida, 59 anos, corretor de imóveis, no caminho ao velório de dom Eugênio, passou pelo abatedouro, no Engenho de Dentro, comprou uma pomba por R$ 25 e a soltou dentro da catedral. A ave voou e posou sobre o caixão: "Foi um sinal de Deus, é a presença do Espírito Santo" - berraram os jornais. Parece que vale tudo para controlar a memória, até mesmo estabelecer preço tão baixo para uma das pessoas da Santíssima Trindade. É muita falta de respeito com a fé das pessoas.
- "A mídia deve ser pensada não como um lugar neutro de observação, mas como um agente produtor de imagens, representações e memória" nos diz o citado pesquisador holandês, que estudou o tratamento racista dispensado às minorias étnicas pela imprensa europeia. Para ele, os modos de produção e os meios de produção de uma imagem social sobre o passado são usados no campo da disputa política.
Nessa disputa, a mídia nos forçou a fazer os comentários que você acaba de ler, o que pode parecer indelicadeza num momento como esse de morte, de perda e de dor para os amigos do cardeal. Mas se a gente não falar agora, quando então? Stuart Angel e os que combateram a ditadura merecem que a gente corra o risco de parecer indelicado. É preciso dizer, em respeito à memória deles, que Dom Eugênio tinha suas virtudes, mas uma delas não foi, certamente, a solidariedade aos perseguidos políticos para quem os portões do Sumaré, até prova em contrário, permaneceram fechados. Que ele descanse em paz!
P.S. - O jornalista amazonense Fábio Alencar foi quem me repassou o texto de Hildegard Angel, que circulou nas redes sociais. O doutor Geraldo Sá Peixoto Pinheiro, historiador e professor da Universidade Federal do Amazonas, foi quem me indicou, há anos, o filme "Uma cidade sem passado". Quem me permitiu discutir o conceito de memória foram minhas colegas doutoras Jô Gondar e Vera Dodebei, organizadoras do livro "O que é Memória Social" (Rio de Janeiro: Contra Capa/ Programa de Pós- Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2005). Nenhum deles tem qualquer responsabilidade sobre os juízos por mim aqui emitidos.
José Ribamar Bessa Freire é professor universitário (UERJ), reside no Rio há mais de 20 anos, assina coluna no Diário do Amazonas, de Manaus, sua terra natal, e mantém o blog Taqui Pra Ti. Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz
Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons
O filme
Comecemos pelo filme, que se baseia em fatos históricos. Na década de 1980, o Ministério da Educação da Alemanha realiza um concurso de redação escolar, de âmbito nacional, cujo tema é "Minha cidade natal na época do III Reich". Milhares de estudantes se inscrevem, entre eles a jovem Sônia Rosenberger, que busca reconstituir a história de sua cidade, Pfilzing - como é denominada no filme - considerada até então baluarte da resistência antinazista.
Mas a estudante encontra oposição. As instituições locais de memória - o arquivo municipal, a biblioteca, a igreja e até mesmo o jornal Pfilzinger Morgen - fecham-lhe suas portas, apresentando desculpas esfarrapadas. Ninguém quer que uma "judia e comunista" futuque o passado. Sônia, porém, não desiste. Corre atrás. Busca os documentos orais. Entrevista pessoas próximas, familiares, vizinhos, que sobreviveram ao nazismo. As lembranças, contudo, são fragmentadas, descosturadas, não passam de fiapos sem sentido.
A jovem pesquisadora procura, então, as autoridades locais, que se recusam a falar e ainda consideram sua insistência como uma ameaça à manutenção da memória oficial, que é a garantia da ordem vigente. Por não ter acesso aos documentos, Sônia perde os prazos do concurso. Desconfiada, porém, de que debaixo daquele angu tinha caroço - perdão, de que sob aquele chucrute havia salsicha - resolve continuar pesquisando por conta própria, mesmo depois de formada, casada e com filhos, numa batalha desigual que durou alguns anos.
Hostilizada pelo poder civil e religioso, Sônia recorre ao Judiciário e entra com uma ação na qual reivindica o direito à informação. Ganha o processo e, finalmente, consegue ingressar nos arquivos. Foi aí, no meio da papelada, que ela descobriu, horrorizada, as razões da cortina de silêncio: sua cidade, longe de ter sido um bastião da resistência ao nazismo, havia sediado um campo de concentração. Lá, os nazistas prenderam, torturaram e mataram muita gente, com a cumplicidade ou a omissão de moradores, que tentaram, depois, apagar essa mancha vergonhosa da memória, forjando um passado que nunca existiu.
Os documentos registraram inclusive a prisão de um judeu, denunciado na época por dois padres, que no momento da pesquisa continuavam ainda vivos, vivíssimos, tentando impedir o acesso de Sônia aos registros. No entanto, o mais doloroso, era que aqueles que, ontem, haviam sido carrascos, cúmplices da opressão, posavam, hoje, como heróis da resistência e parceiros da liberdade. Quanto escárnio! Os safados haviam invertido os papéis. Por isso, ocultavam os documentos.
Deus tá vendo
E é aqui que entra a forma como a mídia cobriu a morte do cardeal dom Eugênio Sales, que comandou a Arquidiocese do Rio, com mão forte, ao longo de 30 anos (1971-2001), incluindo os anos de chumbo da ditadura militar. O que aconteceu nesse período? O Brasil já elegeu três presidentes que foram reprimidos pela ditadura, mas até hoje, não temos acesso aos principais documentos da repressão.
Se a Comissão Nacional da Verdade, instalada em maio último pela presidente Dilma Rousseff, pudesse criar, no campo da memória, algo similar à operação "Deus tá vendo", organizada pela Policia Civil do Rio Grande do Sul, talvez encontrássemos a resposta. Na tal operação, a Polícia prendeu na última quinta-feira quatro pastores evangélicos envolvidos em golpes na venda de automóveis. Seria o caso de perguntar: o que foi que Deus viu na época da ditadura militar?
Tem coisas que até Ele duvida. Tive a oportunidade de acompanhar a trajetória do cardeal Eugênio Sales, na qualidade de repórter da ASAPRESS, uma agência nacional de notícias arrendada pela CNBB em 1967. Também, cobri reuniões e assembleias da Conferência dos Bispos para os jornais do Rio - O Sol, O Paiz e Correio da Manhã, quando dom Eugênio era Arcebispo Primaz de Salvador. É a partir desse lugar que posso dar um modesto testemunho.
Os bispos que lutavam contra as arbitrariedades eram Helder Câmara, Waldir Calheiros, Cândido Padin, Paulo Evaristo Arns e alguns outros mais que foram vigiados e perseguidos. Mas não dom Eugênio, que jogava no time contrário. Um dos auxiliares de dom Helder, o padre Henrique, foi torturado até a morte em 1969, num crime que continua atravessado na garganta de todos nós e que esperamos seja esclarecido pela Comissão da Verdade. Padres e leigos foram presos e torturados, sem que escutássemos um pio de protesto de dom Eugênio, contrário à teologia da libertação e ao envolvimento da Igreja com os pobres.
O cardeal Eugenio Sales era um homem do poder, que amava a pompa e o rapapé, muito atuante no campo político. Foi ele um dos inspiradores das "candocas" - como Stanislaw Ponte Preta chamava as senhoras da CAMDE, a Campanha da Mulher pela Democracia. As "candocas" desenvolveram trabalhos sociais nas favelas exclusivamente com o objetivo de mobilizar setores pobres para seus objetivos golpistas. Foram elas, as "candocas", que organizaram manifestações de rua contra o governo democraticamente eleito de João Goulart, incluindo a famigerada "Marcha da família com Deus pela liberdade", que apoiou o golpe militar, com financiamento de multinacionais, o que foi muito bem documentado pelo cientista político René Dreifuss, em seu livro "1964: A Conquista do Estado" (Vozes, 1981). Ele teve acesso ao Caixa 2 do IPES/IBAD.
Nós, toda a torcida do Flamengo e Deus que estava vendo tudo, sabíamos que dom Eugênio era, com todo o respeito, o cardeal da ditadura. Se não sofro de amnésia - e não sofro de amnésia ou de qualquer doença neurodegenerativa - posso garantir que na época ele nem disfarçava, ao contrário manifestava publicamente orgulho do livre trânsito que tinha entre os militares e os poderosos.
- "Quem tem dúvidas...basta pesquisar os textos assinados por ele no JB e n'O Globo" - escreve a jornalista Hildegard Angel, que foi colunista dos dois jornais e avaliou assim a opção preferencial do cardeal:
- A Igreja Católica, no Rio, sob a égide de dom Eugenio Salles, foi cada vez mais se distanciando dos pobres e se aproximando, cultivando, cortejando as estruturas do poder. Isso não poderia acabar bem. Acabou no menor percentual de católicos no país: 45,8%...
Portões do Sumaré
Por isso, a jornalista estranhou - e nós também - a forma como o cardeal Eugenio Sales foi retratado no velório pelas autoridades. Ele foi apresentado como um combatente contra a ditadura, que abriu os portões da residência episcopal para abrigar os perseguidos políticos. O prefeito Eduardo Paes, em campanha eleitoral, declarou que o cardeal "defendeu a liberdade e os direitos individuais". O governador Sérgio Cabral e até o presidente do Senado, José Sarney, insistiram no mesmo tema, apresentando dom Eugênio como o campeão "do respeito às pessoas e aos direitos humanos".
Não foram só os políticos. O jornalista e acadêmico Luiz Paulo Horta escreveu que dom Eugênio chegou a abrigar no Rio "uma quantidade enorme de asilados políticos", calculada, por baixo, numa estimativa do Globo, em "mais de quatro mil pessoas perseguidas por regimes militares da América do Sul". Outro jornalista, José Casado, elevou o número para cinco mil. Ou seja, o cardeal era um agente duplo. Publicamente, apoiava a ditadura e, por baixo dos panos, na clandestinidade, ajudava quem lutava contra. Só faltou arranjarem um codinome para ele, denominado pelo papa Bento XVI como "o intrépido pastor".
Seria possível acreditar nisso, se o jornal tivesse entrevistado um por cento das vítimas. Bastaria 50 perseguidos nos contarem como o cardeal com eles se solidarizou. No entanto, o jornal não dá o nome de uma só - umazinha - dessas cinco mil pessoas. Enquanto isto não acontecer, preferimos ficar com o corajoso depoimento de Hildegard Angel, cujo irmão Stuart, foi torturado e morto pelo Serviço de Inteligência da Aeronáutica. Sua mãe, a estilista Zuzu Angel, procurou o cardeal e bateu com a cara na porta do palácio episcopal.
Segundo Hilde, dom Eugênio "fechou os olhos às maldades cometidas durante a ditadura, fechando seus ouvidos e os portões do Sumaré aos familiares dos jovens ditos "subversivos" que lá iam levar suas súplicas, como fez com minha mãe Zuzu Angel (e isso está documentado)". Ela acha surpreendente que os jornais queiram nos fazer acreditar "que ocorreu justo o contrário!", como no filme "Uma cidade sem passado".
Mas não é tão surpreendente assim. O texto de Hildegard menciona a grande habilidade, em vida, de dom Eugenio, em "manter ótimas relações com os grandes jornais, para os quais contribuiu regularmente com artigos". As azeitadas relações com os donos dos jornais e com alguns jornalistas em postos-chave continuaram depois da morte, como é possível constatar com a cobertura do velório. A defesa de dom Eugênio, na realidade, funciona aqui como uma autodefesa da mídia e do poder.
Os jornais elogiaram, como uma virtude e uma delicadeza, o gesto do cardeal Eugenio Sales que cada vez que ia a Roma levava mamão-papaia para o papa João Paulo II, com o mesmo zelo e unção com que o senador Alfredo Nascimento levava tucumã já descascado para o café da manhã do então governador Amazonino Mendes. São os rituais do poder com seus rapapés.
- Dentro de uma sociedade, assim como os discursos, as memórias são controladas e negociadas entre diferentes grupos e diferentes sistemas de poder. Ainda que não possam ser confundidas com a "verdade", as memórias têm valor social de "verdade" e podem ser difundidas e reproduzidas como se fossem "a verdade" - escreve Teun A. van Dijk, doutor pela Universidade de Amsterdã.
A "verdade" construída pela mídia foi capaz de fotografar até "a presença do Espírito Santo" no funeral. Um voluntário da Cruz Vermelha, Gilberto de Almeida, 59 anos, corretor de imóveis, no caminho ao velório de dom Eugênio, passou pelo abatedouro, no Engenho de Dentro, comprou uma pomba por R$ 25 e a soltou dentro da catedral. A ave voou e posou sobre o caixão: "Foi um sinal de Deus, é a presença do Espírito Santo" - berraram os jornais. Parece que vale tudo para controlar a memória, até mesmo estabelecer preço tão baixo para uma das pessoas da Santíssima Trindade. É muita falta de respeito com a fé das pessoas.
- "A mídia deve ser pensada não como um lugar neutro de observação, mas como um agente produtor de imagens, representações e memória" nos diz o citado pesquisador holandês, que estudou o tratamento racista dispensado às minorias étnicas pela imprensa europeia. Para ele, os modos de produção e os meios de produção de uma imagem social sobre o passado são usados no campo da disputa política.
Nessa disputa, a mídia nos forçou a fazer os comentários que você acaba de ler, o que pode parecer indelicadeza num momento como esse de morte, de perda e de dor para os amigos do cardeal. Mas se a gente não falar agora, quando então? Stuart Angel e os que combateram a ditadura merecem que a gente corra o risco de parecer indelicado. É preciso dizer, em respeito à memória deles, que Dom Eugênio tinha suas virtudes, mas uma delas não foi, certamente, a solidariedade aos perseguidos políticos para quem os portões do Sumaré, até prova em contrário, permaneceram fechados. Que ele descanse em paz!
P.S. - O jornalista amazonense Fábio Alencar foi quem me repassou o texto de Hildegard Angel, que circulou nas redes sociais. O doutor Geraldo Sá Peixoto Pinheiro, historiador e professor da Universidade Federal do Amazonas, foi quem me indicou, há anos, o filme "Uma cidade sem passado". Quem me permitiu discutir o conceito de memória foram minhas colegas doutoras Jô Gondar e Vera Dodebei, organizadoras do livro "O que é Memória Social" (Rio de Janeiro: Contra Capa/ Programa de Pós- Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2005). Nenhum deles tem qualquer responsabilidade sobre os juízos por mim aqui emitidos.
José Ribamar Bessa Freire é professor universitário (UERJ), reside no Rio há mais de 20 anos, assina coluna no Diário do Amazonas, de Manaus, sua terra natal, e mantém o blog Taqui Pra Ti. Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz
Ilustração: AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoons
segunda-feira, 9 de julho de 2012
Carta de Brasília sobre o Seminário Internacional Operação Condor
Os participantes do Seminário Internacional Operação Condor – que tratou sobre buscar a verdade sobre a repressão aos opositores de ditaduras sul-americanas e eliminar líderes de esquerda instalados nos seis países do Cone Sul – divulgaram nesta sexta-feira a Carta de Brasília.
CARTA DE BRASÍLIA
Os participantes do Seminário Internacional Operação Condor que, na Câmara dos Deputados, em Brasília, capital do Brasil, nos dias 4 e 5 de julho de 2012, avaliou os avanços democráticos na busca da Verdade sobre o conluio transnacional de ditaduras cívico militares que, fundados na Doutrina de Segurança Nacional, ministrada pela Escola das Américas, praticaram terrorismo de Estado, impondo, na segunda metade do século XX, o horror e o sofrimento a milhões de pessoas em centros clandestinos de tortura e de desaparição, em campos de concentração, nas cadeias e quartéis da América do Sul, concordam em declarar que:
- a consciência da impunidade destes crimes é geradora de criminalidade e de corrupção sistêmica, infligindo dor aguda e permanente aos sobreviventes e aos familiares das vítimas;
- que é exigida uma nova interpretação dos instrumentos legais que cada ditadura impôs nos ordenamentos jurídicos nacionais, como autoanistia e prescrição, a garantir a impunidade aos crimes por elas praticados contra os povos da região, cabendo-nos confrontar toda lei, decreto ou norma que possa reduzir, anular ou restringir a proteção aos direitos humanos, e propugnar que os Estados, em nossas constituições, permitam a investigação e a punição dos crimes contra a humanidade, conforme já estabelece a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, para que os agentes de Estado, assim como os seus cúmplices civis que violaram os direitos humanos, sejam processados e punidos com penas proporcionais aos seus crimes;
- que, na convicção de que a conciliação desejada necessita cumprir o caminho da Memória, Verdade e Justiça em relação aos crimes do terrorismo de Estado, para que nunca mais aconteçam, buscaremos a integração dos nossos parlamentos, com a essencial participação da sociedade civil, através da constituição de um Fórum Permanente de Justiça e Direitos Humanos, que objetiva por compartilhar e levar, pelo entendimento fraterno, para as legislações nacionais mais atrasadas, os avanços institucionais já conquistados no caráter supranacional das convenções e dos tratados internacionais a que nossos Estados tenham aderido, admitindo uma hierarquia equivalente, na medida em que essas normas acolhem o direito das pessoas, povos e permitem a convivência entre as nossas nações;
- que nos comprometemos com a constituição do Tribunal Russel da América do Sul, como corte civil de investigação e julgamento de atos graves de violação dos Direitos Humanos já praticados e que se mantêm atualmente na ação ou omissão dos Estados nacionais da região, que devem respeitar e aplicar o direito internacional e as resoluções dos organismos responsáveis pela sua aplicação e também deve cumprir com a Verdade.
Nós, participantes do Seminário Internacional Operação Condor, também aprovamos moção de repúdio ao golpe branco que, como lampejo de um nefasto espírito civil da Operação Condor, retirou em processo sumário e sem direito de ampla defesa, Fernando Lugo do cargo de Presidente do Paraguai que ocupava pelo voto direto e democrático do seu povo, agora traído pelos que se dizem seus representantes no parlamento.
Seminário Internacional - 06/07/2012
Os participantes do Seminário Internacional Operação Condor – que tratou sobre buscar a verdade sobre a repressão aos opositores de ditaduras sul-americanas e eliminar líderes de esquerda instalados nos seis países do Cone Sul – divulgaram nesta sexta-feira a Carta de Brasília.
CARTA DE BRASÍLIA
Os participantes do Seminário Internacional Operação Condor que, na Câmara dos Deputados, em Brasília, capital do Brasil, nos dias 4 e 5 de julho de 2012, avaliou os avanços democráticos na busca da Verdade sobre o conluio transnacional de ditaduras cívico militares que, fundados na Doutrina de Segurança Nacional, ministrada pela Escola das Américas, praticaram terrorismo de Estado, impondo, na segunda metade do século XX, o horror e o sofrimento a milhões de pessoas em centros clandestinos de tortura e de desaparição, em campos de concentração, nas cadeias e quartéis da América do Sul, concordam em declarar que:
- a consciência da impunidade destes crimes é geradora de criminalidade e de corrupção sistêmica, infligindo dor aguda e permanente aos sobreviventes e aos familiares das vítimas;
- que é exigida uma nova interpretação dos instrumentos legais que cada ditadura impôs nos ordenamentos jurídicos nacionais, como autoanistia e prescrição, a garantir a impunidade aos crimes por elas praticados contra os povos da região, cabendo-nos confrontar toda lei, decreto ou norma que possa reduzir, anular ou restringir a proteção aos direitos humanos, e propugnar que os Estados, em nossas constituições, permitam a investigação e a punição dos crimes contra a humanidade, conforme já estabelece a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, para que os agentes de Estado, assim como os seus cúmplices civis que violaram os direitos humanos, sejam processados e punidos com penas proporcionais aos seus crimes;
- que, na convicção de que a conciliação desejada necessita cumprir o caminho da Memória, Verdade e Justiça em relação aos crimes do terrorismo de Estado, para que nunca mais aconteçam, buscaremos a integração dos nossos parlamentos, com a essencial participação da sociedade civil, através da constituição de um Fórum Permanente de Justiça e Direitos Humanos, que objetiva por compartilhar e levar, pelo entendimento fraterno, para as legislações nacionais mais atrasadas, os avanços institucionais já conquistados no caráter supranacional das convenções e dos tratados internacionais a que nossos Estados tenham aderido, admitindo uma hierarquia equivalente, na medida em que essas normas acolhem o direito das pessoas, povos e permitem a convivência entre as nossas nações;
- que nos comprometemos com a constituição do Tribunal Russel da América do Sul, como corte civil de investigação e julgamento de atos graves de violação dos Direitos Humanos já praticados e que se mantêm atualmente na ação ou omissão dos Estados nacionais da região, que devem respeitar e aplicar o direito internacional e as resoluções dos organismos responsáveis pela sua aplicação e também deve cumprir com a Verdade.
Nós, participantes do Seminário Internacional Operação Condor, também aprovamos moção de repúdio ao golpe branco que, como lampejo de um nefasto espírito civil da Operação Condor, retirou em processo sumário e sem direito de ampla defesa, Fernando Lugo do cargo de Presidente do Paraguai que ocupava pelo voto direto e democrático do seu povo, agora traído pelos que se dizem seus representantes no parlamento.
Seminário Internacional - 06/07/2012
domingo, 8 de julho de 2012
As garras do Brasil na Condor
Luiz Cláudio Cunha *
A mais longa ditadura da maior nação do continente não poderia ficar de fora do clube mais sinistro dos regimes militares da América do Sul. O Brasil dos generais do regime de 1964 estava lá, de corpo e alma, na reunião secreta em Santiago do Chile, em novembro de 1975, que criou a Operação Condor.
Nascia a mais articulada e mais ampla manifestação de terrorismo de Estado na história mundial. Nunca houve uma coordenação tão extensa entre tantos países para um combate tão impiedoso e sangrento a grupos de dissensão política ou de luta armada, confrontados à margem das leis por técnicas consagradas no submundo do crime.
Tempos depois, em 1991, as democracias renascidas da região construíram um difícil pacto de integração política e econômica batizado de Mercosul. Dezesseis anos antes, contudo, os generais das seis ditaduras do Cone Sul — Chile, Argentina, Brasil, Uruguai, Paraguai e Bolívia — tinham conseguido realizar, a ferro e fogo, uma proeza ainda mais improvável: um secreto entendimento pela desintegração física, política e psicológica de milhares de pessoas.
A Operação Condor trouxe para dentro do Estado ilegítimo das ditaduras as práticas ilegais da violência de bandos paramilitares, transformando agentes da lei em executores ou cúmplices encapuzados de uma dissimulada política oficial de extermínio.
O envolvimento de efetivos regulares da segurança com as práticas bandoleiras de grupos assassinos explica, de alguma forma, a leniência e depois a conivência com o crime por parte de corporações historicamente fundadas na lei e na ordem. O Esquadrão da Morte, em países como Brasil, Argentina e Uruguai, contaminou o Exército. O Exército perdeu os limites com a obsessão da guerra antisubversiva. A luta contra a guerrilha transbordou as fronteiras da lei e exacerbou a violência. A virulência clandestina e sem controle do esquadrão empolgou o Exército. O Exército apodreceu com o Esquadrão da Morte. O esquadrão confundiu-se com o Exército, o Exército virou um esquadrão.
A Condor, enfim, reconheceu tudo isso e criminalizou os regimes militares do Cone Sul.
Dois policiais resumem este mergulho criminoso do poder no Brasil e no Uruguai. O americano Dan Mitrione era especialista em interrogatórios do Serviço de Segurança Pública (OPS, na sigla em inglês), uma agência americana de fachada da CIA extinta um ano antes do nascimento da Condor. Em 16 anos de vida, treinou um milhão de policiais no chamado Terceiro Mundo. Mitrione desembarcou no Rio de Janeiro um ano antes do golpe de 1964 e ao sair, três anos depois, a OPS tinha adestrado 100 mil agentes brasileiros, 1/6 da força policial do país. Mitrione assumiu a OPS do Uruguai em 1969, quatro anos antes do golpe de Bordaberry, com um lema que definia seus princípios: “A dor precisa, no lugar preciso, na quantidade precisa, para o efeito desejado”.
O brasileiro Sérgio Fleury, delegado do DOPS, era internacionalmente conhecido como líder do clandestino Esquadrão da Morte, de onde importou métodos de combate ao crime comum para uso na repressão política. Seis meses antes do golpe de junho de 1973, o embaixador americano em Montevidéu, Charles Wallace Adair Jr., avisou Washington que oficiais da alta hierarquia militar do Uruguai foram treinados no final de 1971 pelo Brasil para combater a insurgência. Um dos treinadores brasileiro levados aos aprendizes de Mitrione era o experiente Fleury.
O embaixador detalhou a ação de órgãos de segurança da Argentina (Secretaria de Inteligência do Estado, SIDE) e do Brasil (Serviço Nacional de Informações, SNI) no apoio a grupos uruguaios clandestinos: “Os brasileiros reconhecidamente aconselharam e treinaram oficiais militares e policiais uruguaios envolvidos em grupos contra-terroristas que se responsabilizaram por atentados a bomba, sequestros e até mesmo assassinatos de suspeitos de pertencerem à esquerda radical”. Na Argentina, o delegado-chefe da Polícia Federal em Buenos Aires era Alberto Villar, fundador em 1973 da versão local do Esquadrão da Morte, a clandestina Triple A, ou Aliança Anticomunista Argentina, acusada de quase 2 mil mortes em dez anos de crimes.
Quase dois anos antes da formalização da Condor, os seis países da região fizeram uma reunião secreta em Buenos Aires, em fevereiro de 1974. O ‘I Seminário de Polícia sobre a Luta Antisubversiva no Cone Sul’ reunia os chefes da Polícia Federal, alguns deles oficiais do Exército — casos do Brasil, Argentina e Paraguai. Acertaram “novas formas de colaboração transnacional para confrontar a ameaça subversiva”, conforme o general Miguel Angel Iñiguez, chefe da Polícia Federal argentina, anunciando a decisão final de operações conjuntas “contra inimigos políticos em qualquer dos países associados”.
A preocupação anticomunista se aguçou com a revolução castrista em Cuba e entrou na pauta dos quartéis do continente, que se reuniam regularmente na Conferencia dos Exércitos Americanos (CEA). No 10º encontro, realizado em Caracas uma semana antes do golpe de Pinochet em 1973, o general brasileiro Breno Borges Fortes propôs “ampliar a troca de experiências ou informações” na guerra ao comunismo.
Em 1976, na Nicarágua do ditador Somoza, disse o chefe da delegação argentina na CEA:
— A guerra ideológica não respeita fronteiras — avisou o general Roberto Viola, que carregava no sobrenome a crença de quem não reconhece limites no combate à subversão. Quatro anos antes, este desbordamento da violência ficou evidente no Uruguai.
Em fevereiro de 1972, os guerrilheiros Tupamaros sequestraram um fotógrafo em Montevidéu. Nelson Bardessio era mais do que isso: era também policial, segurança e motorista do americano William Cantrell, o homem da CIA no Uruguai. O policial revelou ser membro do Esquadrão da Morte que agia dentro da DNII, Dirección Nacional de Información y Inteligencia, a central de polícia abastecida pela CIA de Cantrell com equipamento de tortura.
As ordens do ministro do Interior, Santiago de Brum Carbajal, eram repassadas ao esquadrão pelo vice-ministro Armando Acosta y Lara. Bardessio revelou que o próprio secretário pessoal do presidente Pacheco Areco, Carlos Piran, conseguiu junto à SIDE (a Secretaria de Inteligência do Estado argentino) a gelinita explosiva com que o Esquadrão da Morte praticou quatro atentados em Montevidéu. O motorista da CIA contou que ele fizera parte de uma equipe de cinco policiais treinados pela SIDE em Buenos Aires em “atividades antiterroristas” e “técnicas de vigilância”. Outros dois agentes, disse Bardessio, foram enviados ao Brasil para exercitar “operações de Esquadrão da Morte”.
Os futuros quadros da Condor começaram a se formar nesta geleia geral que misturava gelinita com militares, policiais, agentes secretos, torturadores e terroristas paramilitares. Ali mesmo em Montevidéu, três anos depois, a Condor começou a sair do ovo. Em outubro de 1975, nos salões exclusivos do hotel Carrasco, reuniu-se a 11ª CEA, a conferência dos Exércitos. Num encontro prévio, os chefes dos serviços secretos do continente ouviram a proposta de seu camarada chileno, um certo coronel Manuel Contreras, chefe da Dirección Nacional de Inteligência (DINA), a polícia política de Pinochet, para a criação de “um programa repressivo transnacional”.
A proposta foi aprovada, e Contreras não perdeu tempo. Despachou o vice-diretor da DINA, o coronel da Força Aérea Mário Jahn, direto de Montevidéu para Assunção, onde entregou ao general Francisco Brítez, chefe da repressão do Governo Stroessner, o convite para uma reunião “absolutamente secreta” em Santiago do Chile para o mês seguinte, novembro.
O nº 2 da DINA, antes de voltar para casa, fez uma segunda escala, um pouco acima no mapa: Brasília. Aqui, entregou o convite e a agenda de dez páginas da pomposa ‘Iª Reunión de Trabajo de Inteligencia Nacional’ a um fraterno amigo de Contreras: o general João Baptista Figueiredo, o chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI) do Governo Geisel.
As duas ditaduras tinham muito em comum. O palácio La Moneda ainda fumegava com as bombas de sete ataques da Força Aérea quando o embaixador brasileiro Antônio Cândido Câmara Canto adentrou a Escola Militar de Santiago no instante em que o quarteto da Junta Militar prestava juramento como novo centro de poder.
– Ainda estávamos disparando quando chegou o embaixador e nos comunicou o reconhecimento – registrou o próprio Pinochet, assombrado com a ligeireza que tornou o Brasil o primeiro governo do planeta a estabelecer vínculos formais com a nova ordem.
Dissimulados, os Estados Unidos de Nixon e Kissinger esperaram baixar a poeira das bombas e só reconheceram a ditadura Pinochet treze dias depois do Brasil. O espaço aéreo chileno ainda estava fechado, horas depois do golpe, quando quatro aviões militares brasileiros pousaram na base de Santiago, oficialmente levando apenas remédios e mantimentos.
No Brasil, o apoio encoberto ao golpe foi imediato. Um acordo, articulado no Governo Médici (1969-1974) e executado no Governo Geisel (1974-1979), garantiu fuzis e munição para a repressão interna no Chile, como revelou no domingo (1/julho) a repórter Júnia Gama, de O Globo, com base em documentos inéditos do extinto EMFA (Estado-Maior das Forças Armadas). Um ofício de 17 de janeiro de 1975 revela a ordem secreta do EMFA para raspar o logotipo da República nos fuzis tipo FAL para não permitir a identificação da cumplicidade brasileira nas armas produzidas na fábrica do Exército em Itajubá, Minas Gerais.
O próprio Manuel Contreras afiara suas garras no Brasil. Um interlocutor do coronel, o americano Robert Scherrer, chefe do escritório do FBI em Buenos Aires, diz que o chileno foi treinado em Brasília. O golpe mal completara um mês quando um economista brasileiro da CEPAL foi incorporado aos dez mil prisioneiros reunidos no Estádio Nacional de Santiago. José Serra, ex-presidente da União Nacional dos Estudantes, chegou a ouvir gente fazendo interrogatório em português. Os agentes do SNI foram ao Chile depois do golpe para obter informações de esquerdistas brasileiros, enquanto oficiais chilenos vinham ao Brasil para treinamento na Escola Nacional de Informações, a ESNI – que serviu de inspiração a Contreras na formatação de sua DINA.
Entre os 24 mil documentos da Inteligência americana sobre o Chile, desclassificados no Governo Clinton, existe um memorando secreto que o general Vernon Walters, o vice-diretor da CIA, mandou em julho de 1975 ao assessor de Segurança Nacional do presidente Ford, Brent Scowcroft. Ele retransmitia o apelo que Pinochet, inusitadamente aflito pelo risco de isolamento internacional, mandava para a Casa Branca. No item 3 da nota, Walters mostrava a intimidade brasileira com Pinochet: “Os chilenos sabem que não conseguem obter ajuda direta por causa da oposição do Congresso [americano]. Querem saber se há algum modo de conseguir essa ajuda indiretamente, via Espanha, Taiwan, Brasil ou República da Coréia”.
O general americano nem precisou lembrar. Mas os quatro países, por coincidência, eram ferozes ditaduras anticomunistas.
Dois meses depois, em setembro de 1975, Pinochet e o vice-diretor da DINA, coronel aviador Mario Jahn, discutiram a expansão internacional da repressão chilena. O coronel era o homem encarregado por Contreras de pilotar as incursões além-fronteiras da Condor, desafio que sempre demandava gastos maiores. Na conversa na sala de jantar do general, presenciada por um civil amigo de Pinochet, Jahn explicou:
– Os americanos estão ajudando por meio do Brasil. Este é o momento de se mover, avançar e levar a luta para o nível mundial – propôs o coronel a Pinochet, informado de que treinamento da CIA era fornecido por meio do Brasil. Brasília era definida, na conversa, como o “canal de treinamento” de técnicas de interrogatório e tortura para os agentes da DINA.
Um memorando de 15 de setembro de 1975 de Contreras a Pinochet pede um reforço de US$ 600 mil no orçamento daquele ano da DINA. No item 1 da nota, o coronel justifica ao general: “Aumento do pessoal da DINA ligado às missões diplomáticas do Chile. Um total de dez pessoas: 2 no Peru, 2 no Brasil, 2 na Argentina, 1 na Venezuela, 1 na Costa Rica, 1 na Bélgica e 1 na Itália.”
Em 1999, o jornal O Globo deu outra pista segura sobre a presença da DINA em solo brasileiro. Ele revelou uma destinação adicional ao pedido de verbas feito por Contreras a Pinochet em 1975: o custeio dos oficiais da DINA que, a cada dois meses, faziam um curso de seis semanas no Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS) do Exército brasileiro, em Manaus, no coração da maior floresta tropical do mundo.
Durante algum tempo, um de seus principais instrutores foi o adido militar da embaixada da França em Brasília entre 1973 e 1975. O general Paul Aussaresses, especialista em inteligência, era veterano de duas épicas derrotas francesas em guerras coloniais: a da Indochina (1946-1954) e a da Argélia (1954-1962). Foi herói na Segunda Guerra Mundial, saltando de paraquedas na Normandia para fazer a ligação entre a Resistência francesa e as tropas aliadas do Dia D. Foi vilão no fronte argelino, como mestre da tortura aplicada pelas tropas paraquedistas do general Jacques Massu. Graças a Aussaresses, a França introduziu no seu vocabulário uma deformação paraestatal que só condenava nos outros povos: os macabros ‘esquadrões da morte’.
Quase duas décadas antes do jornalista Vladimir Herzog aparecer “suicidado” no porão do DOI-CODI em São Paulo, Aussaresses mandou “suicidar” em Argel um dos líderes da Frente de Liberação Nacional (FLN), o argelino Larbi Ben M’Hidi, que apareceu enforcado na prisão após um interrogatório pesado, em 1957. Na sequência, outro suicídio: o influente advogado Ali Boumendjel “atirou-se” do sexto andar do prédio onde estava preso. Em 2000, o general reconheceu que nenhum se suicidara. Ambos foram mortos pela tortura executada sob suas ordens. Mas Aussaresses não se arrependia:
– A tortura é um mal menor, mas necessário, que deve ser usado para evitar o mal maior do terrorismo.
O mesmo argumento consolador foi usado pelo general Ernesto Geisel no depoimento que prestou ao CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, ao dizer:
— Acho que a tortura em certos casos torna-se necessária, para obter confissões. (…) Não justifico a tortura, mas reconheço que há circunstâncias em que o indivíduo é impelido a praticar a tortura, para obter determinadas confissões e, assim, evitar um mal maior — explicou Geisel.
Apesar da tolerância, o ditador brasileiro ainda simulava espanto com a ousadia da repressão de Pinochet. Em setembro de 1974, uma bomba da DINA explodiu em Buenos Aires o carro do ex-comandante do Exército chileno, Carlos Pratts, matando o general legalista e sua mulher. Quatro meses depois, quando Figueiredo sugeriu uma aproximação entre o SNI e a DINA, Geisel vetou:
— Eles que venham aqui ver a ESNI – disse o presidente, segundo anotação de 10 de janeiro de 1975 do secretário particular Heitor Ferreira, revelada pelo jornalista Elio Gaspari. Exatamente uma semana depois, o EMFA do general Geisel mandaria raspar o logotipo das armas que seu hipócrita governo fornecia clandestinamente à ditadura chilena.
Os chilenos, apesar do fingimento de Geisel, já frequentavam a Escola Nacional de Informações do SNI em Brasília desde o ano anterior, logo após a criação da DINA. O que Geisel não queria, realmente, era misturar suas tropas de repressão com as de Pinochet. Além disso, havia um erro de origem no convite de Contreras a Figueiredo para a reunião no Chile. Por definição, o SNI era um órgão de informação do presidente da República. Assim, o SNI não era o braço operacional no combate à luta armada. A missão em Santiago, por dever de ofício, cabia ao Centro de Informações do Exército.
Era o CIE que guerreava o que o SNI informava.
Esta era a lógica – e Figueiredo repassou o encargo a quem de direito, o general Confúcio Danton de Paula Avelino, o chefe do CIE, com uma recomendação especial de Geisel: reduzir a presença brasileira em Santiago. Em vez de três, como pedia Contreras, o Brasil mandaria apenas dois militares – um coronel e um major, com ordens estritas para escutar mais do que falar.
O Brasil não tinha muitas ideias para uma ação coletiva, mas queria preservar as ações bilaterais, caso a caso, quando ações repressivas fossem necessárias. Uma última recomendação de Figueiredo, repassando a ordem de Geisel: reduzir a participação brasileira à condição de observador, sem autorização para firmar nenhum documento.
Na manhã ensolarada de 25 de novembro de 1975, uma terça-feira, os dois brasileiros se juntaram a outros treze militares disfarçados de terno e gravata que ocuparam o grande salão da mansão da Alameda O’Higgins onde funcionava a Academia de Guerra do Exército, na capital chilena. A voz aguda de Pinochet ocupou um pedaço da sessão de hora e meia da abertura. Depois, Contreras assumiu o controle, pronunciando seu mantra favorito: “A subversão não reconhece fronteiras nem países”.
A repressão que assombrava o Cone Sul desde a década anterior agora tinha uma organização, um código e um método — e a loucura de sempre. A operação clandestina ganhou o nome de Condor, o abutre típico dos Andes, que agora abria suas asas sobre os povos e os países da região sem fronteiras para um terror de Estado sem limites. A velha e informal prática da troca de informações e de prisioneiros entre ditaduras camaradas tinha agora uma grife que ninguém ainda conhecia pelo nome, mas já temiam pelo terror contagiante de quem perdia parentes e companheiros, desaparecidos na treva e na noite sem fim.
A ata de fundação desse clube com licença para matar foi assinada pelos representantes de cinco dos seis países fundadores. O capitão argentino Jorge Demetrio Casas (diretor de operações do Serviço de Inteligência do Estado, SIDE), o coronel uruguaio José Fons (subdiretor do Serviço de Inteligência de Defensa, SID), o coronel paraguaio Benito Guanes Serrano (chefe do Departamento de Inteligência do EMFA), o major boliviano Carlos Mena Burgos (do Serviço de Inteligência do Estado, SIE), além do anfitrião, o coronel chileno Manoel Contreras. Os dois brasileiros dissimulados que lá estavam aprovaram tudo, mas não assinaram nada, cumprindo a ordem de Geisel de presença restrita à condição de ‘observadores’.
Até os documentos desclassificados da CIA, portanto, não conseguiam quebrar o anonimato planejado pela hipocrisia brasileira. Achei estranha esta lacuna e, durante dois anos, enquanto finalizava meu livro sobre a Operação Condor, procurei identificar a dupla enviada por Brasília. Não localizei documentos, mas os relatos de veteranos da ditadura e da comunidade de informações acabaram decifrando o mistério.
Estes são os nomes dos brasileiros ‘observadores’ que fundaram a Condor:
Flávio de Marco e Thaumaturgo Sotero Vaz.
Dois militares, dois agentes do Centro de Informações do Exército (CIE).
Dois veteranos do combate nas selvas do Araguaia (1972-1974), o maior e mais longo foco guerrilheiro do país, onde 70 combatentes comunistas de linha maoísta foram esmagados por um contingente militar que chegou a oito mil homens.
O coronel De Marco e o major Thaumaturgo estavam lá, na frente de batalha.
Quando De Marco chegou ao Araguaia, outubro de 1973, ainda resistiam 56 guerrilheiros. Quando o coronel foi embora, um ano depois, não restavam mais do que dez combatentes. Suas sepulturas nunca foram encontradas. A falta de investigação do governo sobre a violência no Araguaia levou à condenação do Brasil, em 2010, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA.
O major Thaumaturgo, oficial paraquedista com curso de guerra na selva na Escola das Américas, no Canal do Panamá, comandava os ‘boinas pretas’ do Destacamento das Forças Especiais do Rio Janeiro, quando foi enviado ao Araguaia em 1972 com um pelotão de 36 homens. Em 1984, já coronel, Thaumaturgo assumiu o comando em Manaus do CIGS, o centro de guerra na selva onde treinaram os agentes da DINA do coronel Contreras, seu anfitrião na fundação da Condor uma década antes.
De Marco e Thaumaturgo estavam em Santiago por delegação expressa de Geisel e seu sucessor na presidência. Quando o coronel Figueiredo comandava no Rio o Regimento de Cavalaria de Guarda, De Marco servia ao seu lado. O general Figueiredo o levou com ele ao assumir a chefia do SNI e, quatro anos após fundar a Condor, De Marco subiu a rampa do poder com o presidente Figueiredo, na condição de diretor administrativo do Palácio do Planalto. O major Thaumaturgo foi cadete na academia militar do general Danilo Venturini, que dirigiu a ESNI, a escola frequentada por Contreras e seus rapazes da DINA, antes de assumir a chefia do Gabinete Militar no Governo Figueiredo.
Os brasileiros da Condor estavam, portanto, entre amigos.
Os observadores e seus chefes integravam uma irmandade.
A irmandade da Condor.
Um abutre carniceiro que via longe. Em 1979, quando a Condor ainda voava alto, um agente da CIA repetiu no Senado dos Estados Unidos uma frase do coronel Contreras:
— Iremos até a Austrália, se necessário, para pegar nossos inimigos.
Em novembro de 1978, a Condor foi até Porto Alegre para pegar seus inimigos.
É a capital brasileira do Cone Sul, no Estado que faz fronteira com a Argentina e o Uruguai. A repressão uruguaia localizou na cidade dois ativistas da esquerda ‘requeridos’ pela ditadura: Lilian Celiberti e Universindo Rodriguez Diaz. Atravessar a fronteira seca do Rio Grande do Sul parecia ser ainda mais simples do que cruzar o Rio da Prata para sequestrar opositores em Buenos Aires.
— Brasil todavia no es Argentina! — advertiu o coronel Calixto de Armas, o homem mais poderoso da repressão, chefe do Departamento II do Comando Geral do Exército, responsável pelas ações do braço operacional da Condor uruguaia, a secreta Compañia de Contrainformaciones. O coronel pairava acima das quatro Divisões de Exército do Uruguai e acima até do Organismo Coordenador de Operações Antisubversivas, o temido OCOA, a versão local do DOI-CODI. O coronel só recebia ordens de dois homens: seu chefe imediato, o general Manuel J. Nuñez, chefe do Estado-Maior, e do comandante-geral do Exército, general Gregório ‘Goyo’ Álvarez.
De Armas procurou um velho parceiro da irmandade da Condor no Brasil: o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o homem que no Governo Médici formou a máquina de tortura do DOI-CODI da rua Tutoia, em São Paulo, e que no Governo Geisel foi chefe em Brasília do Setor de Operações do CIE, o serviço secreto do Exército. Quando fez o contato, em novembro, De Armas encontrou o camarada de repressão comandando há dez meses um quartel de artilharia em São Leopoldo, nas cercanias da capital gaúcha. A partir das instruções de Ustra, a cadeia de comando acionada na operação de Porto Alegre mostra que a loucura da Condor tinha método e hierarquia.
O Departamento II do coronel De Armas contatou desde Montevidéu o Estado-Maior do III Exército em Porto Alegre, pedindo passe livre da Condor para os homens da Compañia de Contrainformaciones. O CIE gaúcho repassou o pedido ao chefe do CIE em Brasília, general Edison Boscacci Guedes. O coronel uruguaio foi autorizado, então, a pilotar a Condor em solo gaúcho em parceria com o DOPS, a polícia política comandada pelo nome mais famoso da repressão no sul, o delegado Pedro Seelig, que desbaratou a esquerda armada na região.
Comunicando-se pelo sistema codificado criado pela CIA para a DINA do coronel Contreras, a Condortel 3 (base Uruguai) entrou em linha com a Condortel 6 (base Brasil). Na primeira semana, a cúpula da Compañia uruguaia circulou em Porto Alegre: o comandante, major Carlos Alberto Rossel, seu subcomandante, major José Walter Bassani, e o capitão Eduardo Ramos, chefe da seção técnica. Na segunda semana, foram rendidos pelo chefe da seção administrativa, capitão Glauco Yannone. Na manhã de domingo, 12 de novembro, prenderam Lilian Celiberti na Rodoviária de Porto Alegre. O capitão Yannone e o delegado Seelig estavam lá, pela fraterna camaradagem da Condor. Universindo foi preso horas depois, com os dois filhos de Lilian — Camilo, de 8, e Francesca, de 3 anos.
Lilian e Universindo foram despidos e duramente torturados na sede do DOPS gaúcho.
O delegado Seelig observava, o capitão Yannone espancava.
O casal e as crianças foram levados pela polícia brasileira para o Chuí, na fronteira, onde os militares aplicaram novas torturas. Esperta, Lilian insinuou um encontro em Porto Alegre com o alvo principal da Condor uruguaia — Hugo Cores, o líder do PVP, o partido clandestino do qual faziam parte Lilian e Universindo. Lilian foi trazida de volta à capital gaúcha pelo chefe do setor de operações da Compañia, o capitão Eduardo Ferro, que armou uma ratonera para capturar sua presa no apartamento da uruguaia, na rua Botafogo.
Mas foi o capitão que caiu na ratonera de Hugo Cores.
Clandestino em São Paulo, e alertado pelo silêncio de seus companheiros, Hugo Cores deu um telefonema anônimo para a sucursal da revista Veja em Porto Alegre, denunciando o desaparecimento. Quando os homens armados de Ferro e Seelig ocultos no apartamento abriram a porta, com pistolas em punho, na tarde chuvosa de 17 de novembro de 1978, não surpreenderam o esperado Hugo Cores. Na verdade, foram surpreendidos pela presença inesperada de um repórter e um fotógrafo, que ficaram ainda mais surpresos com as pistolas apontadas para suas cabeças.
Conto tudo isso porque eu era o repórter, ao lado do fotógrafo JB Scalco.
Eu olhei no olho da Condor.
Encarei a escuridão sem fim do cano da pistola entre meus olhos.
Meu amigo Scalco morreu do coração cinco anos depois, aos 32 anos.
Tenho, assim, o privilégio nada honroso de ser o único repórter do Cone Sul a sobreviver às garras da Condor.
Assumi então o desafio de contar essa história e identificar seus responsáveis, na série de reportagens que produzi ao longo de dois anos na revista Veja e no livro que publiquei, 30 anos depois do sequestro.
A inesperada aparição de dois jornalistas, algo inédito no território da Condor, obrigou os chefes uruguaios e brasileiros a abortarem a operação de Porto Alegre, voltando às pressas a Montevidéu. Dessa vez, portanto, a praxe de sangue da Condor não se cumpriria: os sequestrados sobreviveram, apesar das torturas, e não puderam ser simplesmente ‘desaparecidos’.
A denúncia do sequestro dos uruguaios em Porto Alegre virou um escândalo internacional, que mobilizou a imprensa, os partidos, os advogados, as entidades de direitos humanos.
O sequestro de Universindo, Lilian e as duas crianças é uma das 81 ações reabertas na Justiça pelo presidente José Pepe Mujica contra crimes de tortura, desaparecimento forçado e sequestro nos anos da ditadura (1973-85). No próximo dia 16 de julho, segunda-feira, estarei no tribunal da calle Missiones, em Montevidéu, depondo como testemunha do sequestro a pedido da juíza Mariana Motta. Foi ela que, em fevereiro de 2011, condenou o ex-presidente Juan María Bordaberry a 30 anos de prisão por liderar o golpe de Estado de 1973 que dissolveu o Congresso e a democracia do país. Bordaberry morreu no ano passado, aos 83 anos.
O fiasco da rua Botafogo expôs ao ridículo as ditaduras do Uruguai e do Brasil, no contexto de uma operação repressiva que nunca dava errado, que nunca deixava sobreviventes.
Em 1978, a Condor deixara para trás, vivos, quatro sequestrados e duas testemunhas para contarem como era a Condor, como agia a Condor.
Como avisara o coronel Calixto de Armas, Brasil todavia no era Argentina!.
Afinal, por que fracassou a Condor em Porto Alegre?
Por duas razões principais, que desconcertaram simultaneamente brasileiros e uruguaios por detalhes que não eram comuns em seus países.
As crianças desordenaram a rotina de eficiência do delegado Seelig e seus agentes do DOPS. Ao contrário dos uruguaios, que roubavam os bebês de suas vítimas para entregá-los às famílias de seus algozes, a repressão brasileira não registra o desaparecimento de crianças, muito menos sua presença nas ações de busca e captura de guerrilheiros.
Os jornalistas abalaram a disciplina militar do capitão Ferro e seus parceiros da Compañia de Contrainformaciones. Ao contrário dos brasileiros, mais acostumados à insistente cobertura de uma imprensa mais incômoda sobre os excessos do regime, apesar da censura, a repressão uruguaia não concebia a presença inoportuna de jornalistas no seu local de trabalho clandestino.
De um lado e outro da fronteira, a Condor piscou, sem esconder a visível hesitação que impediu o assassinato que antes tudo resolvia, tudo desaparecia, tudo apagava.
No crepúsculo de seu governo, um mês após o sequestro de Porto Alegre, o general Geisel ordenou que o general Figueiredo, que assumiria a presidência em março de 1979, resolvesse o fiasco da Condor. Foi enviado ao sul o novo chefe do SNI, general Octávio Aguiar de Medeiros, que fracassou outra vez, na frustrada tentativa de simular uma explicação para o sumiço dos uruguaios.
Assim, num único episódio da Condor, envolveram-se sem sucesso os três generais mais influentes da ditadura brasileira tentando juntar as penas da Condor depenada em Porto Alegre.
Em uma entrevista que fiz em 1993 com o autor do telefonema anônimo, Hugo Cores, ele me dizia: “Todos os uruguaios sequestrados no exterior, algo em torno de 180, estão desaparecidos até hoje. Os únicos que estão vivos são Lilian, as crianças e Universindo. O sequestro de Porto Alegre foi o único realizado no Brasil e o último praticado pelo Uruguai. Depois dele, nunca mais houve outro”, festejava o líder do PVP.
A Condor voou com intensidade entre 1975 e 1980. E matou intensamente antes, durante e depois, com o método e a loucura das ondas sucessivas de governos militares que afogaram a democracia e a razão durante quase um século de arbítrio no Cone Sul. Nos cinco maiores países da região, foram exatos 92 anos somados de ditaduras que eram de um e eram de todos nós: Paraguai (1954-89), Brasil (1964-85), Chile (1973-90), Uruguai (1973-85) e Argentina (1976-83).
Nos tempos da Condor desatinada, a força matava pessoas e palavras, mas também inventava um novo léxico para tentar traduzir sua violência. No Chile da Condor emergiu uma nova palavra no dicionário da repressão, coalhado de presos e mortos. Surgiu a figura intermediária e angustiante do “desaparecido” – que quase sempre era uma coisa e outra, preso ou morto, sequência e consequência um do outro, e que tinha sobre eles a vantagem de isentar o Estado de explicações e justificativas.
Um “desaparecido” era uma dúvida, quem sabe um equívoco, talvez uma fatalidade, sempre um mistério que não incriminava ninguém e absolvia a todos – com exceção dos familiares da vítima, condenados ao desespero, subjugados pelo luto iminente, esmagados pela dor incessante. Um “desaparecido” só levantava suspeitas e mais perguntas, sem a garantia de certezas ou possíveis respostas. O “desaparecido” disseminava o medo. Do medo brotava o terror – e novas palavras.
O dicionário de terror da Condor fabricava uma expressão ainda mais assustadora, mais aflita: os no-nombrados, os N.N., cadáveres sem nome, sem cara, sem história, exumados no ninho da Condor por regimes de força sem coragem, sem caráter, sem futuro, sem passado. As pessoas com nomes desapareciam separadamente e, de repente, emergiam do solo covas coletivas apinhadas de mortos sem nome. No auge de seu poder, em 1979, o general argentino Jorge Videla fez uma contorcida exegese do que seria esta estranha criação dos regimes onde voava a Condor:
— O que é um desaparecido? Como tal, o desaparecido é uma incógnita… Enquanto desaparecido, não pode ter nenhum tratamento especial: é uma incógnita, é um desaparecido, não tem identidade. Não está nem morto, nem vivo. Está desaparecido… — consolava o general da mais sangrenta ditadura do Cone Sul.
Os tiranos que caçam os opositores da tirania começam subvertendo o idioma e o sentido lógico das coisas. Carimbam como ‘subversivo’ ao resistente que ousa desafiar a opressão. Combatem o ‘terrorista’ indefeso e manietado com o aparato pesado do terror de Estado. Pregam a defesa da lei pela ação ilegal e clandestina de seus agentes. Alegam defender a democracia impondo o arbítrio. Chamam de ‘ditabranda’ o que não passa de ditadura. Revogam Constituições para aplicar Atos Institucionais. Impõem a insegurança dos cidadãos em nome da Segurança Nacional. Torturam e matam invocando a paz e a tranquilidade. Fabricam ‘suicídios’ ou ‘atropelamentos’ quando os presos cometem o desatino de morrer sob tortura em suas masmorras. Concedem autoanistia para perdoar seus crimes imperdoáveis. Clamam pelo esquecimento para abafar a impunidade. E condenam como revanchismo o que não passa de memória.
No paraíso da Condor, os generais e seus serviçais conseguiram subverter o significado de duas das palavras mais valiosas da civilização: dignidade e liberdade.
Dignidad, no Chile da Condor, era o nome de uma colônia agrícola, 335 km ao sul de Santiago, criada por um ex-enfermeiro da Luftwaffe nazista. Era frequentada por Pinochet e pelo coronel Contreras. Era um centro de torturas e de treinamento para interrogatórios da DINA.
Libertad, no Uruguai da Condor, 5o km a oeste de Montevidéu, era o maior presídio político do país. Abrigava 600 presos políticos. Desde junho de 1980, um deles atendia pelo nome de Universindo Rodriguez Díaz, o uruguaio sequestrado em Porto Alegre.
Dignidad virou sinônimo de tortura no Chile da Condor.
Libertad virou endereço de presídio no Uruguai da Condor.
Quando veio o golpe de 11 de setembro no Chile, um dos primeiros presos foi um general da Força Aérea, Alberto Bachelet. Ficou preso seis meses no Cárcere Público de Santiago, mas o coração não resistiu às torturas, nele e em velhos camaradas. Morreu de infarto em março de 1974, um mês antes de completar 51 anos. Foi poupado de uma forte emoção da história, 32 anos depois, quando o mesmo Partido Socialista derrubado à bala por Pinochet voltou ao poder pelo voto em 2006 elegendo como presidente uma médica pediatra de 56 anos – a filha de Alberto, Michelle Bachelet.
Em janeiro de 1975, dez meses antes do nascimento da Condor, Michelle e sua mãe foram presas e levadas vendadas para Villa Grimaldi, um famoso centro clandestino da DINA em Santiago. Lá, aos 24 anos, Michelle foi torturada.
É de Michelle Bachelet esta frase que nos inspira e consola:
— Só as feridas lavadas cicatrizam.
Passados tantos anos de tanto horror, este encontro de hoje, aqui em Brasília, na capital do país que é um envergonhado sócio fundador da Condor, mostra que começamos a lavar nossas feridas com esta forte manifestação da memória coletiva.
Todos, aqui, temos uma só mensagem a quem fez e a quem tenta esquecer tudo aquilo:
Nós sabemos, nós lembramos, nós contamos.
Brasília, 5/julho/2012
Luiz Cláudio Cunha, jornalista, é autor de Operação
Condor: o Sequestro dos Uruguaios (ed. L&PM, 2008)
cunha.luizclaudio@gmail.com
Luiz Cláudio Cunha *
A mais longa ditadura da maior nação do continente não poderia ficar de fora do clube mais sinistro dos regimes militares da América do Sul. O Brasil dos generais do regime de 1964 estava lá, de corpo e alma, na reunião secreta em Santiago do Chile, em novembro de 1975, que criou a Operação Condor.
Nascia a mais articulada e mais ampla manifestação de terrorismo de Estado na história mundial. Nunca houve uma coordenação tão extensa entre tantos países para um combate tão impiedoso e sangrento a grupos de dissensão política ou de luta armada, confrontados à margem das leis por técnicas consagradas no submundo do crime.
Tempos depois, em 1991, as democracias renascidas da região construíram um difícil pacto de integração política e econômica batizado de Mercosul. Dezesseis anos antes, contudo, os generais das seis ditaduras do Cone Sul — Chile, Argentina, Brasil, Uruguai, Paraguai e Bolívia — tinham conseguido realizar, a ferro e fogo, uma proeza ainda mais improvável: um secreto entendimento pela desintegração física, política e psicológica de milhares de pessoas.
A Operação Condor trouxe para dentro do Estado ilegítimo das ditaduras as práticas ilegais da violência de bandos paramilitares, transformando agentes da lei em executores ou cúmplices encapuzados de uma dissimulada política oficial de extermínio.
O envolvimento de efetivos regulares da segurança com as práticas bandoleiras de grupos assassinos explica, de alguma forma, a leniência e depois a conivência com o crime por parte de corporações historicamente fundadas na lei e na ordem. O Esquadrão da Morte, em países como Brasil, Argentina e Uruguai, contaminou o Exército. O Exército perdeu os limites com a obsessão da guerra antisubversiva. A luta contra a guerrilha transbordou as fronteiras da lei e exacerbou a violência. A virulência clandestina e sem controle do esquadrão empolgou o Exército. O Exército apodreceu com o Esquadrão da Morte. O esquadrão confundiu-se com o Exército, o Exército virou um esquadrão.
A Condor, enfim, reconheceu tudo isso e criminalizou os regimes militares do Cone Sul.
Dois policiais resumem este mergulho criminoso do poder no Brasil e no Uruguai. O americano Dan Mitrione era especialista em interrogatórios do Serviço de Segurança Pública (OPS, na sigla em inglês), uma agência americana de fachada da CIA extinta um ano antes do nascimento da Condor. Em 16 anos de vida, treinou um milhão de policiais no chamado Terceiro Mundo. Mitrione desembarcou no Rio de Janeiro um ano antes do golpe de 1964 e ao sair, três anos depois, a OPS tinha adestrado 100 mil agentes brasileiros, 1/6 da força policial do país. Mitrione assumiu a OPS do Uruguai em 1969, quatro anos antes do golpe de Bordaberry, com um lema que definia seus princípios: “A dor precisa, no lugar preciso, na quantidade precisa, para o efeito desejado”.
O brasileiro Sérgio Fleury, delegado do DOPS, era internacionalmente conhecido como líder do clandestino Esquadrão da Morte, de onde importou métodos de combate ao crime comum para uso na repressão política. Seis meses antes do golpe de junho de 1973, o embaixador americano em Montevidéu, Charles Wallace Adair Jr., avisou Washington que oficiais da alta hierarquia militar do Uruguai foram treinados no final de 1971 pelo Brasil para combater a insurgência. Um dos treinadores brasileiro levados aos aprendizes de Mitrione era o experiente Fleury.
O embaixador detalhou a ação de órgãos de segurança da Argentina (Secretaria de Inteligência do Estado, SIDE) e do Brasil (Serviço Nacional de Informações, SNI) no apoio a grupos uruguaios clandestinos: “Os brasileiros reconhecidamente aconselharam e treinaram oficiais militares e policiais uruguaios envolvidos em grupos contra-terroristas que se responsabilizaram por atentados a bomba, sequestros e até mesmo assassinatos de suspeitos de pertencerem à esquerda radical”. Na Argentina, o delegado-chefe da Polícia Federal em Buenos Aires era Alberto Villar, fundador em 1973 da versão local do Esquadrão da Morte, a clandestina Triple A, ou Aliança Anticomunista Argentina, acusada de quase 2 mil mortes em dez anos de crimes.
Quase dois anos antes da formalização da Condor, os seis países da região fizeram uma reunião secreta em Buenos Aires, em fevereiro de 1974. O ‘I Seminário de Polícia sobre a Luta Antisubversiva no Cone Sul’ reunia os chefes da Polícia Federal, alguns deles oficiais do Exército — casos do Brasil, Argentina e Paraguai. Acertaram “novas formas de colaboração transnacional para confrontar a ameaça subversiva”, conforme o general Miguel Angel Iñiguez, chefe da Polícia Federal argentina, anunciando a decisão final de operações conjuntas “contra inimigos políticos em qualquer dos países associados”.
A preocupação anticomunista se aguçou com a revolução castrista em Cuba e entrou na pauta dos quartéis do continente, que se reuniam regularmente na Conferencia dos Exércitos Americanos (CEA). No 10º encontro, realizado em Caracas uma semana antes do golpe de Pinochet em 1973, o general brasileiro Breno Borges Fortes propôs “ampliar a troca de experiências ou informações” na guerra ao comunismo.
Em 1976, na Nicarágua do ditador Somoza, disse o chefe da delegação argentina na CEA:
— A guerra ideológica não respeita fronteiras — avisou o general Roberto Viola, que carregava no sobrenome a crença de quem não reconhece limites no combate à subversão. Quatro anos antes, este desbordamento da violência ficou evidente no Uruguai.
Em fevereiro de 1972, os guerrilheiros Tupamaros sequestraram um fotógrafo em Montevidéu. Nelson Bardessio era mais do que isso: era também policial, segurança e motorista do americano William Cantrell, o homem da CIA no Uruguai. O policial revelou ser membro do Esquadrão da Morte que agia dentro da DNII, Dirección Nacional de Información y Inteligencia, a central de polícia abastecida pela CIA de Cantrell com equipamento de tortura.
As ordens do ministro do Interior, Santiago de Brum Carbajal, eram repassadas ao esquadrão pelo vice-ministro Armando Acosta y Lara. Bardessio revelou que o próprio secretário pessoal do presidente Pacheco Areco, Carlos Piran, conseguiu junto à SIDE (a Secretaria de Inteligência do Estado argentino) a gelinita explosiva com que o Esquadrão da Morte praticou quatro atentados em Montevidéu. O motorista da CIA contou que ele fizera parte de uma equipe de cinco policiais treinados pela SIDE em Buenos Aires em “atividades antiterroristas” e “técnicas de vigilância”. Outros dois agentes, disse Bardessio, foram enviados ao Brasil para exercitar “operações de Esquadrão da Morte”.
Os futuros quadros da Condor começaram a se formar nesta geleia geral que misturava gelinita com militares, policiais, agentes secretos, torturadores e terroristas paramilitares. Ali mesmo em Montevidéu, três anos depois, a Condor começou a sair do ovo. Em outubro de 1975, nos salões exclusivos do hotel Carrasco, reuniu-se a 11ª CEA, a conferência dos Exércitos. Num encontro prévio, os chefes dos serviços secretos do continente ouviram a proposta de seu camarada chileno, um certo coronel Manuel Contreras, chefe da Dirección Nacional de Inteligência (DINA), a polícia política de Pinochet, para a criação de “um programa repressivo transnacional”.
A proposta foi aprovada, e Contreras não perdeu tempo. Despachou o vice-diretor da DINA, o coronel da Força Aérea Mário Jahn, direto de Montevidéu para Assunção, onde entregou ao general Francisco Brítez, chefe da repressão do Governo Stroessner, o convite para uma reunião “absolutamente secreta” em Santiago do Chile para o mês seguinte, novembro.
O nº 2 da DINA, antes de voltar para casa, fez uma segunda escala, um pouco acima no mapa: Brasília. Aqui, entregou o convite e a agenda de dez páginas da pomposa ‘Iª Reunión de Trabajo de Inteligencia Nacional’ a um fraterno amigo de Contreras: o general João Baptista Figueiredo, o chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI) do Governo Geisel.
As duas ditaduras tinham muito em comum. O palácio La Moneda ainda fumegava com as bombas de sete ataques da Força Aérea quando o embaixador brasileiro Antônio Cândido Câmara Canto adentrou a Escola Militar de Santiago no instante em que o quarteto da Junta Militar prestava juramento como novo centro de poder.
– Ainda estávamos disparando quando chegou o embaixador e nos comunicou o reconhecimento – registrou o próprio Pinochet, assombrado com a ligeireza que tornou o Brasil o primeiro governo do planeta a estabelecer vínculos formais com a nova ordem.
Dissimulados, os Estados Unidos de Nixon e Kissinger esperaram baixar a poeira das bombas e só reconheceram a ditadura Pinochet treze dias depois do Brasil. O espaço aéreo chileno ainda estava fechado, horas depois do golpe, quando quatro aviões militares brasileiros pousaram na base de Santiago, oficialmente levando apenas remédios e mantimentos.
No Brasil, o apoio encoberto ao golpe foi imediato. Um acordo, articulado no Governo Médici (1969-1974) e executado no Governo Geisel (1974-1979), garantiu fuzis e munição para a repressão interna no Chile, como revelou no domingo (1/julho) a repórter Júnia Gama, de O Globo, com base em documentos inéditos do extinto EMFA (Estado-Maior das Forças Armadas). Um ofício de 17 de janeiro de 1975 revela a ordem secreta do EMFA para raspar o logotipo da República nos fuzis tipo FAL para não permitir a identificação da cumplicidade brasileira nas armas produzidas na fábrica do Exército em Itajubá, Minas Gerais.
O próprio Manuel Contreras afiara suas garras no Brasil. Um interlocutor do coronel, o americano Robert Scherrer, chefe do escritório do FBI em Buenos Aires, diz que o chileno foi treinado em Brasília. O golpe mal completara um mês quando um economista brasileiro da CEPAL foi incorporado aos dez mil prisioneiros reunidos no Estádio Nacional de Santiago. José Serra, ex-presidente da União Nacional dos Estudantes, chegou a ouvir gente fazendo interrogatório em português. Os agentes do SNI foram ao Chile depois do golpe para obter informações de esquerdistas brasileiros, enquanto oficiais chilenos vinham ao Brasil para treinamento na Escola Nacional de Informações, a ESNI – que serviu de inspiração a Contreras na formatação de sua DINA.
Entre os 24 mil documentos da Inteligência americana sobre o Chile, desclassificados no Governo Clinton, existe um memorando secreto que o general Vernon Walters, o vice-diretor da CIA, mandou em julho de 1975 ao assessor de Segurança Nacional do presidente Ford, Brent Scowcroft. Ele retransmitia o apelo que Pinochet, inusitadamente aflito pelo risco de isolamento internacional, mandava para a Casa Branca. No item 3 da nota, Walters mostrava a intimidade brasileira com Pinochet: “Os chilenos sabem que não conseguem obter ajuda direta por causa da oposição do Congresso [americano]. Querem saber se há algum modo de conseguir essa ajuda indiretamente, via Espanha, Taiwan, Brasil ou República da Coréia”.
O general americano nem precisou lembrar. Mas os quatro países, por coincidência, eram ferozes ditaduras anticomunistas.
Dois meses depois, em setembro de 1975, Pinochet e o vice-diretor da DINA, coronel aviador Mario Jahn, discutiram a expansão internacional da repressão chilena. O coronel era o homem encarregado por Contreras de pilotar as incursões além-fronteiras da Condor, desafio que sempre demandava gastos maiores. Na conversa na sala de jantar do general, presenciada por um civil amigo de Pinochet, Jahn explicou:
– Os americanos estão ajudando por meio do Brasil. Este é o momento de se mover, avançar e levar a luta para o nível mundial – propôs o coronel a Pinochet, informado de que treinamento da CIA era fornecido por meio do Brasil. Brasília era definida, na conversa, como o “canal de treinamento” de técnicas de interrogatório e tortura para os agentes da DINA.
Um memorando de 15 de setembro de 1975 de Contreras a Pinochet pede um reforço de US$ 600 mil no orçamento daquele ano da DINA. No item 1 da nota, o coronel justifica ao general: “Aumento do pessoal da DINA ligado às missões diplomáticas do Chile. Um total de dez pessoas: 2 no Peru, 2 no Brasil, 2 na Argentina, 1 na Venezuela, 1 na Costa Rica, 1 na Bélgica e 1 na Itália.”
Em 1999, o jornal O Globo deu outra pista segura sobre a presença da DINA em solo brasileiro. Ele revelou uma destinação adicional ao pedido de verbas feito por Contreras a Pinochet em 1975: o custeio dos oficiais da DINA que, a cada dois meses, faziam um curso de seis semanas no Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS) do Exército brasileiro, em Manaus, no coração da maior floresta tropical do mundo.
Durante algum tempo, um de seus principais instrutores foi o adido militar da embaixada da França em Brasília entre 1973 e 1975. O general Paul Aussaresses, especialista em inteligência, era veterano de duas épicas derrotas francesas em guerras coloniais: a da Indochina (1946-1954) e a da Argélia (1954-1962). Foi herói na Segunda Guerra Mundial, saltando de paraquedas na Normandia para fazer a ligação entre a Resistência francesa e as tropas aliadas do Dia D. Foi vilão no fronte argelino, como mestre da tortura aplicada pelas tropas paraquedistas do general Jacques Massu. Graças a Aussaresses, a França introduziu no seu vocabulário uma deformação paraestatal que só condenava nos outros povos: os macabros ‘esquadrões da morte’.
Quase duas décadas antes do jornalista Vladimir Herzog aparecer “suicidado” no porão do DOI-CODI em São Paulo, Aussaresses mandou “suicidar” em Argel um dos líderes da Frente de Liberação Nacional (FLN), o argelino Larbi Ben M’Hidi, que apareceu enforcado na prisão após um interrogatório pesado, em 1957. Na sequência, outro suicídio: o influente advogado Ali Boumendjel “atirou-se” do sexto andar do prédio onde estava preso. Em 2000, o general reconheceu que nenhum se suicidara. Ambos foram mortos pela tortura executada sob suas ordens. Mas Aussaresses não se arrependia:
– A tortura é um mal menor, mas necessário, que deve ser usado para evitar o mal maior do terrorismo.
O mesmo argumento consolador foi usado pelo general Ernesto Geisel no depoimento que prestou ao CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, ao dizer:
— Acho que a tortura em certos casos torna-se necessária, para obter confissões. (…) Não justifico a tortura, mas reconheço que há circunstâncias em que o indivíduo é impelido a praticar a tortura, para obter determinadas confissões e, assim, evitar um mal maior — explicou Geisel.
Apesar da tolerância, o ditador brasileiro ainda simulava espanto com a ousadia da repressão de Pinochet. Em setembro de 1974, uma bomba da DINA explodiu em Buenos Aires o carro do ex-comandante do Exército chileno, Carlos Pratts, matando o general legalista e sua mulher. Quatro meses depois, quando Figueiredo sugeriu uma aproximação entre o SNI e a DINA, Geisel vetou:
— Eles que venham aqui ver a ESNI – disse o presidente, segundo anotação de 10 de janeiro de 1975 do secretário particular Heitor Ferreira, revelada pelo jornalista Elio Gaspari. Exatamente uma semana depois, o EMFA do general Geisel mandaria raspar o logotipo das armas que seu hipócrita governo fornecia clandestinamente à ditadura chilena.
Os chilenos, apesar do fingimento de Geisel, já frequentavam a Escola Nacional de Informações do SNI em Brasília desde o ano anterior, logo após a criação da DINA. O que Geisel não queria, realmente, era misturar suas tropas de repressão com as de Pinochet. Além disso, havia um erro de origem no convite de Contreras a Figueiredo para a reunião no Chile. Por definição, o SNI era um órgão de informação do presidente da República. Assim, o SNI não era o braço operacional no combate à luta armada. A missão em Santiago, por dever de ofício, cabia ao Centro de Informações do Exército.
Era o CIE que guerreava o que o SNI informava.
Esta era a lógica – e Figueiredo repassou o encargo a quem de direito, o general Confúcio Danton de Paula Avelino, o chefe do CIE, com uma recomendação especial de Geisel: reduzir a presença brasileira em Santiago. Em vez de três, como pedia Contreras, o Brasil mandaria apenas dois militares – um coronel e um major, com ordens estritas para escutar mais do que falar.
O Brasil não tinha muitas ideias para uma ação coletiva, mas queria preservar as ações bilaterais, caso a caso, quando ações repressivas fossem necessárias. Uma última recomendação de Figueiredo, repassando a ordem de Geisel: reduzir a participação brasileira à condição de observador, sem autorização para firmar nenhum documento.
Na manhã ensolarada de 25 de novembro de 1975, uma terça-feira, os dois brasileiros se juntaram a outros treze militares disfarçados de terno e gravata que ocuparam o grande salão da mansão da Alameda O’Higgins onde funcionava a Academia de Guerra do Exército, na capital chilena. A voz aguda de Pinochet ocupou um pedaço da sessão de hora e meia da abertura. Depois, Contreras assumiu o controle, pronunciando seu mantra favorito: “A subversão não reconhece fronteiras nem países”.
A repressão que assombrava o Cone Sul desde a década anterior agora tinha uma organização, um código e um método — e a loucura de sempre. A operação clandestina ganhou o nome de Condor, o abutre típico dos Andes, que agora abria suas asas sobre os povos e os países da região sem fronteiras para um terror de Estado sem limites. A velha e informal prática da troca de informações e de prisioneiros entre ditaduras camaradas tinha agora uma grife que ninguém ainda conhecia pelo nome, mas já temiam pelo terror contagiante de quem perdia parentes e companheiros, desaparecidos na treva e na noite sem fim.
A ata de fundação desse clube com licença para matar foi assinada pelos representantes de cinco dos seis países fundadores. O capitão argentino Jorge Demetrio Casas (diretor de operações do Serviço de Inteligência do Estado, SIDE), o coronel uruguaio José Fons (subdiretor do Serviço de Inteligência de Defensa, SID), o coronel paraguaio Benito Guanes Serrano (chefe do Departamento de Inteligência do EMFA), o major boliviano Carlos Mena Burgos (do Serviço de Inteligência do Estado, SIE), além do anfitrião, o coronel chileno Manoel Contreras. Os dois brasileiros dissimulados que lá estavam aprovaram tudo, mas não assinaram nada, cumprindo a ordem de Geisel de presença restrita à condição de ‘observadores’.
Até os documentos desclassificados da CIA, portanto, não conseguiam quebrar o anonimato planejado pela hipocrisia brasileira. Achei estranha esta lacuna e, durante dois anos, enquanto finalizava meu livro sobre a Operação Condor, procurei identificar a dupla enviada por Brasília. Não localizei documentos, mas os relatos de veteranos da ditadura e da comunidade de informações acabaram decifrando o mistério.
Estes são os nomes dos brasileiros ‘observadores’ que fundaram a Condor:
Flávio de Marco e Thaumaturgo Sotero Vaz.
Dois militares, dois agentes do Centro de Informações do Exército (CIE).
Dois veteranos do combate nas selvas do Araguaia (1972-1974), o maior e mais longo foco guerrilheiro do país, onde 70 combatentes comunistas de linha maoísta foram esmagados por um contingente militar que chegou a oito mil homens.
O coronel De Marco e o major Thaumaturgo estavam lá, na frente de batalha.
Quando De Marco chegou ao Araguaia, outubro de 1973, ainda resistiam 56 guerrilheiros. Quando o coronel foi embora, um ano depois, não restavam mais do que dez combatentes. Suas sepulturas nunca foram encontradas. A falta de investigação do governo sobre a violência no Araguaia levou à condenação do Brasil, em 2010, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA.
O major Thaumaturgo, oficial paraquedista com curso de guerra na selva na Escola das Américas, no Canal do Panamá, comandava os ‘boinas pretas’ do Destacamento das Forças Especiais do Rio Janeiro, quando foi enviado ao Araguaia em 1972 com um pelotão de 36 homens. Em 1984, já coronel, Thaumaturgo assumiu o comando em Manaus do CIGS, o centro de guerra na selva onde treinaram os agentes da DINA do coronel Contreras, seu anfitrião na fundação da Condor uma década antes.
De Marco e Thaumaturgo estavam em Santiago por delegação expressa de Geisel e seu sucessor na presidência. Quando o coronel Figueiredo comandava no Rio o Regimento de Cavalaria de Guarda, De Marco servia ao seu lado. O general Figueiredo o levou com ele ao assumir a chefia do SNI e, quatro anos após fundar a Condor, De Marco subiu a rampa do poder com o presidente Figueiredo, na condição de diretor administrativo do Palácio do Planalto. O major Thaumaturgo foi cadete na academia militar do general Danilo Venturini, que dirigiu a ESNI, a escola frequentada por Contreras e seus rapazes da DINA, antes de assumir a chefia do Gabinete Militar no Governo Figueiredo.
Os brasileiros da Condor estavam, portanto, entre amigos.
Os observadores e seus chefes integravam uma irmandade.
A irmandade da Condor.
Um abutre carniceiro que via longe. Em 1979, quando a Condor ainda voava alto, um agente da CIA repetiu no Senado dos Estados Unidos uma frase do coronel Contreras:
— Iremos até a Austrália, se necessário, para pegar nossos inimigos.
Em novembro de 1978, a Condor foi até Porto Alegre para pegar seus inimigos.
É a capital brasileira do Cone Sul, no Estado que faz fronteira com a Argentina e o Uruguai. A repressão uruguaia localizou na cidade dois ativistas da esquerda ‘requeridos’ pela ditadura: Lilian Celiberti e Universindo Rodriguez Diaz. Atravessar a fronteira seca do Rio Grande do Sul parecia ser ainda mais simples do que cruzar o Rio da Prata para sequestrar opositores em Buenos Aires.
— Brasil todavia no es Argentina! — advertiu o coronel Calixto de Armas, o homem mais poderoso da repressão, chefe do Departamento II do Comando Geral do Exército, responsável pelas ações do braço operacional da Condor uruguaia, a secreta Compañia de Contrainformaciones. O coronel pairava acima das quatro Divisões de Exército do Uruguai e acima até do Organismo Coordenador de Operações Antisubversivas, o temido OCOA, a versão local do DOI-CODI. O coronel só recebia ordens de dois homens: seu chefe imediato, o general Manuel J. Nuñez, chefe do Estado-Maior, e do comandante-geral do Exército, general Gregório ‘Goyo’ Álvarez.
De Armas procurou um velho parceiro da irmandade da Condor no Brasil: o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o homem que no Governo Médici formou a máquina de tortura do DOI-CODI da rua Tutoia, em São Paulo, e que no Governo Geisel foi chefe em Brasília do Setor de Operações do CIE, o serviço secreto do Exército. Quando fez o contato, em novembro, De Armas encontrou o camarada de repressão comandando há dez meses um quartel de artilharia em São Leopoldo, nas cercanias da capital gaúcha. A partir das instruções de Ustra, a cadeia de comando acionada na operação de Porto Alegre mostra que a loucura da Condor tinha método e hierarquia.
O Departamento II do coronel De Armas contatou desde Montevidéu o Estado-Maior do III Exército em Porto Alegre, pedindo passe livre da Condor para os homens da Compañia de Contrainformaciones. O CIE gaúcho repassou o pedido ao chefe do CIE em Brasília, general Edison Boscacci Guedes. O coronel uruguaio foi autorizado, então, a pilotar a Condor em solo gaúcho em parceria com o DOPS, a polícia política comandada pelo nome mais famoso da repressão no sul, o delegado Pedro Seelig, que desbaratou a esquerda armada na região.
Comunicando-se pelo sistema codificado criado pela CIA para a DINA do coronel Contreras, a Condortel 3 (base Uruguai) entrou em linha com a Condortel 6 (base Brasil). Na primeira semana, a cúpula da Compañia uruguaia circulou em Porto Alegre: o comandante, major Carlos Alberto Rossel, seu subcomandante, major José Walter Bassani, e o capitão Eduardo Ramos, chefe da seção técnica. Na segunda semana, foram rendidos pelo chefe da seção administrativa, capitão Glauco Yannone. Na manhã de domingo, 12 de novembro, prenderam Lilian Celiberti na Rodoviária de Porto Alegre. O capitão Yannone e o delegado Seelig estavam lá, pela fraterna camaradagem da Condor. Universindo foi preso horas depois, com os dois filhos de Lilian — Camilo, de 8, e Francesca, de 3 anos.
Lilian e Universindo foram despidos e duramente torturados na sede do DOPS gaúcho.
O delegado Seelig observava, o capitão Yannone espancava.
O casal e as crianças foram levados pela polícia brasileira para o Chuí, na fronteira, onde os militares aplicaram novas torturas. Esperta, Lilian insinuou um encontro em Porto Alegre com o alvo principal da Condor uruguaia — Hugo Cores, o líder do PVP, o partido clandestino do qual faziam parte Lilian e Universindo. Lilian foi trazida de volta à capital gaúcha pelo chefe do setor de operações da Compañia, o capitão Eduardo Ferro, que armou uma ratonera para capturar sua presa no apartamento da uruguaia, na rua Botafogo.
Mas foi o capitão que caiu na ratonera de Hugo Cores.
Clandestino em São Paulo, e alertado pelo silêncio de seus companheiros, Hugo Cores deu um telefonema anônimo para a sucursal da revista Veja em Porto Alegre, denunciando o desaparecimento. Quando os homens armados de Ferro e Seelig ocultos no apartamento abriram a porta, com pistolas em punho, na tarde chuvosa de 17 de novembro de 1978, não surpreenderam o esperado Hugo Cores. Na verdade, foram surpreendidos pela presença inesperada de um repórter e um fotógrafo, que ficaram ainda mais surpresos com as pistolas apontadas para suas cabeças.
Conto tudo isso porque eu era o repórter, ao lado do fotógrafo JB Scalco.
Eu olhei no olho da Condor.
Encarei a escuridão sem fim do cano da pistola entre meus olhos.
Meu amigo Scalco morreu do coração cinco anos depois, aos 32 anos.
Tenho, assim, o privilégio nada honroso de ser o único repórter do Cone Sul a sobreviver às garras da Condor.
Assumi então o desafio de contar essa história e identificar seus responsáveis, na série de reportagens que produzi ao longo de dois anos na revista Veja e no livro que publiquei, 30 anos depois do sequestro.
A inesperada aparição de dois jornalistas, algo inédito no território da Condor, obrigou os chefes uruguaios e brasileiros a abortarem a operação de Porto Alegre, voltando às pressas a Montevidéu. Dessa vez, portanto, a praxe de sangue da Condor não se cumpriria: os sequestrados sobreviveram, apesar das torturas, e não puderam ser simplesmente ‘desaparecidos’.
A denúncia do sequestro dos uruguaios em Porto Alegre virou um escândalo internacional, que mobilizou a imprensa, os partidos, os advogados, as entidades de direitos humanos.
O sequestro de Universindo, Lilian e as duas crianças é uma das 81 ações reabertas na Justiça pelo presidente José Pepe Mujica contra crimes de tortura, desaparecimento forçado e sequestro nos anos da ditadura (1973-85). No próximo dia 16 de julho, segunda-feira, estarei no tribunal da calle Missiones, em Montevidéu, depondo como testemunha do sequestro a pedido da juíza Mariana Motta. Foi ela que, em fevereiro de 2011, condenou o ex-presidente Juan María Bordaberry a 30 anos de prisão por liderar o golpe de Estado de 1973 que dissolveu o Congresso e a democracia do país. Bordaberry morreu no ano passado, aos 83 anos.
O fiasco da rua Botafogo expôs ao ridículo as ditaduras do Uruguai e do Brasil, no contexto de uma operação repressiva que nunca dava errado, que nunca deixava sobreviventes.
Em 1978, a Condor deixara para trás, vivos, quatro sequestrados e duas testemunhas para contarem como era a Condor, como agia a Condor.
Como avisara o coronel Calixto de Armas, Brasil todavia no era Argentina!.
Afinal, por que fracassou a Condor em Porto Alegre?
Por duas razões principais, que desconcertaram simultaneamente brasileiros e uruguaios por detalhes que não eram comuns em seus países.
As crianças desordenaram a rotina de eficiência do delegado Seelig e seus agentes do DOPS. Ao contrário dos uruguaios, que roubavam os bebês de suas vítimas para entregá-los às famílias de seus algozes, a repressão brasileira não registra o desaparecimento de crianças, muito menos sua presença nas ações de busca e captura de guerrilheiros.
Os jornalistas abalaram a disciplina militar do capitão Ferro e seus parceiros da Compañia de Contrainformaciones. Ao contrário dos brasileiros, mais acostumados à insistente cobertura de uma imprensa mais incômoda sobre os excessos do regime, apesar da censura, a repressão uruguaia não concebia a presença inoportuna de jornalistas no seu local de trabalho clandestino.
De um lado e outro da fronteira, a Condor piscou, sem esconder a visível hesitação que impediu o assassinato que antes tudo resolvia, tudo desaparecia, tudo apagava.
No crepúsculo de seu governo, um mês após o sequestro de Porto Alegre, o general Geisel ordenou que o general Figueiredo, que assumiria a presidência em março de 1979, resolvesse o fiasco da Condor. Foi enviado ao sul o novo chefe do SNI, general Octávio Aguiar de Medeiros, que fracassou outra vez, na frustrada tentativa de simular uma explicação para o sumiço dos uruguaios.
Assim, num único episódio da Condor, envolveram-se sem sucesso os três generais mais influentes da ditadura brasileira tentando juntar as penas da Condor depenada em Porto Alegre.
Em uma entrevista que fiz em 1993 com o autor do telefonema anônimo, Hugo Cores, ele me dizia: “Todos os uruguaios sequestrados no exterior, algo em torno de 180, estão desaparecidos até hoje. Os únicos que estão vivos são Lilian, as crianças e Universindo. O sequestro de Porto Alegre foi o único realizado no Brasil e o último praticado pelo Uruguai. Depois dele, nunca mais houve outro”, festejava o líder do PVP.
A Condor voou com intensidade entre 1975 e 1980. E matou intensamente antes, durante e depois, com o método e a loucura das ondas sucessivas de governos militares que afogaram a democracia e a razão durante quase um século de arbítrio no Cone Sul. Nos cinco maiores países da região, foram exatos 92 anos somados de ditaduras que eram de um e eram de todos nós: Paraguai (1954-89), Brasil (1964-85), Chile (1973-90), Uruguai (1973-85) e Argentina (1976-83).
Nos tempos da Condor desatinada, a força matava pessoas e palavras, mas também inventava um novo léxico para tentar traduzir sua violência. No Chile da Condor emergiu uma nova palavra no dicionário da repressão, coalhado de presos e mortos. Surgiu a figura intermediária e angustiante do “desaparecido” – que quase sempre era uma coisa e outra, preso ou morto, sequência e consequência um do outro, e que tinha sobre eles a vantagem de isentar o Estado de explicações e justificativas.
Um “desaparecido” era uma dúvida, quem sabe um equívoco, talvez uma fatalidade, sempre um mistério que não incriminava ninguém e absolvia a todos – com exceção dos familiares da vítima, condenados ao desespero, subjugados pelo luto iminente, esmagados pela dor incessante. Um “desaparecido” só levantava suspeitas e mais perguntas, sem a garantia de certezas ou possíveis respostas. O “desaparecido” disseminava o medo. Do medo brotava o terror – e novas palavras.
O dicionário de terror da Condor fabricava uma expressão ainda mais assustadora, mais aflita: os no-nombrados, os N.N., cadáveres sem nome, sem cara, sem história, exumados no ninho da Condor por regimes de força sem coragem, sem caráter, sem futuro, sem passado. As pessoas com nomes desapareciam separadamente e, de repente, emergiam do solo covas coletivas apinhadas de mortos sem nome. No auge de seu poder, em 1979, o general argentino Jorge Videla fez uma contorcida exegese do que seria esta estranha criação dos regimes onde voava a Condor:
— O que é um desaparecido? Como tal, o desaparecido é uma incógnita… Enquanto desaparecido, não pode ter nenhum tratamento especial: é uma incógnita, é um desaparecido, não tem identidade. Não está nem morto, nem vivo. Está desaparecido… — consolava o general da mais sangrenta ditadura do Cone Sul.
Os tiranos que caçam os opositores da tirania começam subvertendo o idioma e o sentido lógico das coisas. Carimbam como ‘subversivo’ ao resistente que ousa desafiar a opressão. Combatem o ‘terrorista’ indefeso e manietado com o aparato pesado do terror de Estado. Pregam a defesa da lei pela ação ilegal e clandestina de seus agentes. Alegam defender a democracia impondo o arbítrio. Chamam de ‘ditabranda’ o que não passa de ditadura. Revogam Constituições para aplicar Atos Institucionais. Impõem a insegurança dos cidadãos em nome da Segurança Nacional. Torturam e matam invocando a paz e a tranquilidade. Fabricam ‘suicídios’ ou ‘atropelamentos’ quando os presos cometem o desatino de morrer sob tortura em suas masmorras. Concedem autoanistia para perdoar seus crimes imperdoáveis. Clamam pelo esquecimento para abafar a impunidade. E condenam como revanchismo o que não passa de memória.
No paraíso da Condor, os generais e seus serviçais conseguiram subverter o significado de duas das palavras mais valiosas da civilização: dignidade e liberdade.
Dignidad, no Chile da Condor, era o nome de uma colônia agrícola, 335 km ao sul de Santiago, criada por um ex-enfermeiro da Luftwaffe nazista. Era frequentada por Pinochet e pelo coronel Contreras. Era um centro de torturas e de treinamento para interrogatórios da DINA.
Libertad, no Uruguai da Condor, 5o km a oeste de Montevidéu, era o maior presídio político do país. Abrigava 600 presos políticos. Desde junho de 1980, um deles atendia pelo nome de Universindo Rodriguez Díaz, o uruguaio sequestrado em Porto Alegre.
Dignidad virou sinônimo de tortura no Chile da Condor.
Libertad virou endereço de presídio no Uruguai da Condor.
Quando veio o golpe de 11 de setembro no Chile, um dos primeiros presos foi um general da Força Aérea, Alberto Bachelet. Ficou preso seis meses no Cárcere Público de Santiago, mas o coração não resistiu às torturas, nele e em velhos camaradas. Morreu de infarto em março de 1974, um mês antes de completar 51 anos. Foi poupado de uma forte emoção da história, 32 anos depois, quando o mesmo Partido Socialista derrubado à bala por Pinochet voltou ao poder pelo voto em 2006 elegendo como presidente uma médica pediatra de 56 anos – a filha de Alberto, Michelle Bachelet.
Em janeiro de 1975, dez meses antes do nascimento da Condor, Michelle e sua mãe foram presas e levadas vendadas para Villa Grimaldi, um famoso centro clandestino da DINA em Santiago. Lá, aos 24 anos, Michelle foi torturada.
É de Michelle Bachelet esta frase que nos inspira e consola:
— Só as feridas lavadas cicatrizam.
Passados tantos anos de tanto horror, este encontro de hoje, aqui em Brasília, na capital do país que é um envergonhado sócio fundador da Condor, mostra que começamos a lavar nossas feridas com esta forte manifestação da memória coletiva.
Todos, aqui, temos uma só mensagem a quem fez e a quem tenta esquecer tudo aquilo:
Nós sabemos, nós lembramos, nós contamos.
Brasília, 5/julho/2012
Luiz Cláudio Cunha, jornalista, é autor de Operação
Condor: o Sequestro dos Uruguaios (ed. L&PM, 2008)
cunha.luizclaudio@gmail.com
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