DEPOIMENTO DE MARIA FÁTIMA MARQUES MACEDO IRMÃ DE PAULO ROBERTO PEREIRA MARQUES VITIMA DA DITADURA MILITAR E DESAPARECIDO POLITICO
Hoje, depois de 40 anos passados, experimento pela primeira vez uma certa isenção, uma pequena distancia que me permitirá dizer o quanto me fez mal ter que ingerir a dor, a angustia, a revolta, o vazio, a impotência, o testemunho de uma família em desequilíbrio, o testemunho de uma mãe desorientada até os dias de hoje, de irmãos marcados pela violência imposta, principalmente os mais novos, com suas vidas por construir, até hoje, reféns de uma historia sem voz.
Ao executarem nosso irmão nos fizeram reféns desta violência, principalmente pela ocultação permanente da historia.
Roubaram de nós, não só a sua presença, mas também os seus indícios, suas referencias, a sua historia e por fim o seu corpo.
Hoje, depois de 40 anos passados, eu consigo compreender todas as doenças que desenvolvi ao engolir tanta perplexidade!
Ansiedade é a palavra dada para explicar esofagite, gastrite, sincope vaso vagal, síndrome metabólica, dispepsia, entre outras e um diagnostico unânime de serem males de fundo emocional.
Tenho dificuldade, real, em elaborar um relato objetivo do significado desta trajetória.
Deixei alguns registros, até agora, nos momentos limites deste caminho, que podem falar, mesmo que seja de uma forma simbólica, como minha vida está, até aqui, impregnada da historia do meu irmão, pela circunstancia de seu desaparecimento.
Sigo aqui, contando alguns fatos que marcaram e falando um pouco sobre ele:
Paulinho, como o chamávamos, foi um dos últimos guerrilheiros a morrer no Araguaia.
Ele estava entre aqueles que, por insistirem em sobreviver, foram marcados com o carimbo de “execução sumária”.
Como nossa mãe costuma dizer: “Ele foi caçado como animal feroz”.
Lembro dele me consolando no dia da morte do nosso pai e 1 ano mais tarde, pegando “no meu pé” por causa do meu primeiro namorado, tínhamos respectivamente 15 e 17 anos.
(Nosso pai teve uma morte prematura, tinha completado 40 anos, conseqüência de um choque anafilático. Paulinho era mais velho, 15 anos e Mariangela a caçula, com 2 anos de idade. Mamãe, logo depois, veio de Poços de Caldas, onde morávamos, com os 5 filhos para Belo Horizonte, ficando assim perto de 3 de seus irmãos que aqui moravam.)
Logo depois, 1 ano depois, ele foi morar em Acesita na casa de uma tia (irmã de mamãe) e lá continuar seus estudos.
Guardo dele, entre outras coisas, um caderno que trouxe consigo onde escrevia textos, crônicas e poesias.
Aqui, em Belo Horizonte, deu sequencia aos estudos e seu desejo era cursar a Faculdade para se tornar um químico industrial.
Ele tinha um pouco mais de 17 anos.
Guardo dele a carteira profissional; ele foi funcionário do Banco de Minas Gerais (hoje extinto), admitido em 1º de março de 1967.
Iniciou sua profissão no mesmo Banco que nosso pai trabalhou por 20 anos.
Consta, na mesma, o seu período de férias, de 22/07 a 16/08/68, a sua efetivação no Banco em 01/03/68, suas contribuições sindicais, enfim, tudo parecia caminhar dentro de um curso normal até que desencadeou uma greve dos bancários, daquelas típicas dos anos 70 da qual ele fazia parte.
Mais tarde, isso rendeu lhe uma acusação de ter encabeçado essa greve. Chamado pela diretoria do Banco, foi pressionado a sair do movimento e que, desta forma, em nome do nosso pai, preservariam o emprego dele.
Mas, os ideais eram mais fortes, ele se negou a abandonar a causa!
Foi, então, demitido em 04 de novembro de 1968.
Lembro me de minha mãe temerosa porque os tempos eram de medo para as pessoas, como ele, que decidiram ficar do que chamavam “do outro lado”.
A partir daí, Paulinho passou a trabalhar só pela sua causa, mas, na minha lembrança eu o via apenas trabalhando e encarava isto naturalmente, apesar de ver mamãe um pouco apreensiva, não sentia nenhuma tensão mais importante naquele curto período, entre sair
do banco e permanecer, alguns meses, fazendo um outro trabalho tido como informal, nos dias de hoje.
Lembro me de alguns deles, seus companheiros, entrando e saindo do nosso apartamento, principalmente Walquiria e Ciro Flavio Salazar (que também foram vitimas desaparecidas na guerrilha do Araguaia), possivelmente fazendo reuniões, dentro do seu quarto.
Eram pessoas descontraídas, simpáticas e lembro me de um ou outro tomando um café com bolo de fubá, que ficava posto à mesa, no fim do dia.
(Suas reuniões eram sem nenhuma participação dos familiares. Meus tios trabalhavam em seus empregos em horário integral, mamãe começou a costurar logo depois que mudamos para Belo Horizonte e eu estava sempre muito ocupada, auxiliando com os irmãos mais novos, Mariângela e Julinho e, também, estudava.
Tenho uma boa lembrança deste tempo, apesar da morte de nosso pai, porque a ausência dele, de uma certa forma, foi compensada por uma casa muito movimentada e ainda, conosco moravam os 3 irmãos de mamãe).
Eu, com pouco mais de 15 anos, tinha um namorado, ajudava minha mãe com os irmãos mais novos, estudava, tinha um irmão revolucionário (que ainda não tinha 18 anos) tinha um senso de responsabilidade muito grande em relação a minha família e experimentava um certo orgulho deste irmão mais velho, tão novo e com idéias sociais e políticas
diferentes. Corajosas, eu achava, considerando o período instalado da ditadura militar!
Era tudo muito dinâmico, eram muitas experiências juntas, mas a vida parecia seguir seu curso e eu na minha adolescência como outra qualquer, junto a tudo isto, não vislumbrava conseqüências sombrias como a que vivemos.
Em um dia de junho de 1969 ele saiu, à tarde, pediu me para avisar nossa mãe que ele faria uma pequena viagem e voltaria no dia seguinte. Mamãe, nesta época, tinha um ateliê de costura perto da rua que morávamos.
À noite, os agentes do DOPS já estavam a sua procura.
Tentaram entrar em nosso apartamento para fazer buscas, mais ou menos às 18:00 horas, mas nossos tios já estavam em casa e uma delas interferiu perguntando:_ Vocês têm um mandado de busca?! Sem ele vocês não poderão entrar!
Disseram que voltariam, com o mandado, no outro dia bem cedo.
Bem, tudo o que acontece a partir desse momento não consegue - se dizer, num relato.
Naquela noite, começamos a experimentar o quê viveríamos dali para frente.
Viramos a noite destruindo tudo que o poderia incriminar, dentro de seu quarto.
Livros, basicamente livros!
No outro dia bem cedo, lá estavam eles!
Foram até o quarto do Paulinho e colocaram tudo abaixo!
Gritaram muito comigo, jogavam tudo no chão...mamãe ficou o tempo todo, assentada na frente da maquina de costura que estava na sala... ela estava aturdida!
Falar do que aconteceu de junho de 1969, quando ele foi, de vez, para a clandestinidade ou falar do que aconteceu e acontece desde o dia que ele foi embora até o dia de hoje, das marcas que deixou, do sofrimento; dos trabalhos de busca frustrados ao longo destes anos, do sentimento de impotência diante do silencio, a cerca deste assunto... seria necessário escrever um livro.
Mas, lembro me que vivemos todos, pelo menos, nos 10 anos subseqüentes à sua saída, horas, dias e noites de muita angustia e sobressaltos.
Lembro me dos natais, que eram sempre muito tristes, principalmente porque, por muitos anos, nossa mãe não saía de casa no dia do natal, sempre na esperança dele voltar naquele dia; tinha medo de sair, ele chegar e não encontrar ninguém e achar que havíamos mudado de lá!
Durante muitos e muitos anos, mesmo depois de casada, com meu marido e meus filhos já adolescentes, meus natais eram tristes, marcado pela falta dele e, principalmente, pela circunstancias de sua morte.
Voltando no tempo, após a saída de Paulinho – “Mamãe entregou se ao trabalho, meus irmãos menores como Mariângela (6 anos), Julinho(9 anos) e Silvinha(12 anos) tiveram sua parcela de sofrimento.
Nosso telefone, ficou censurado por alguns anos!
Quantas vezes, quando atendíamos um telefonema ou dávamos um telefonema ouvíamos, sentíamos que estavam nos escutando.
Silvinha, recebia telefonemas em casa (sempre que ela atendia) dos agentes do DOPS fazendo perguntas a ela, sobre o Paulinho e ameaças de que pegariam mamãe, para prendê-la se ela não contasse tudo que sabia!
Eu, trabalhava na XEROX do Brasil, havia apenas alguns meses, quando ao fazer uma visita num órgão público, para dimensionar uma máquina XEROX apropriada para eles e, sendo recebida por um chefe de setor aconteceu o seguinte:
Logo no começo de minha conversa, buscando informações sobre as necessidades gráficas dos setores, a pessoa que me atendia interrompeu-me, chamou uma secretária, disse lhe que poderia ir almoçar e fez um sinal para ela, quando ouvi um barulho de porta trancando!
Olhei para trás...assustei me e ele chamou minha atenção: Sei quem você
é! Agora você vai me dizer tudo sobre seu irmão...mostrou me uma identificação, fiquei visivelmente nervosa e ele disse me: Você vai dizer tudo o quê sabe, estamos sozinhos e ninguém poderá te ouvir!
Foi horrível! Interrogou me sobre tudo e eu, nada tinha a falar de importante para ele, de fato, não tinha.
Prendeu me lá, fazendo este interrogatório por mais de uma hora e, em um dado momento, ele me perguntou: Como eu via tudo aquilo?! Qual era o meu pensamento?!
Eu respondi: _ Acho que deveríamos ter o direito de seguir o nosso ideal! Meu irmão era um idealista e que, achava natural as pessoas terem o direito de expressar seus pensamentos e completei, “ se cada um cuidasse de varrer a sua porta, toda a cidade ficaria limpa!”
Ele não gostou do que eu disse!...Completou, dizendo que toda a família era comunista!
E que, soubesse eu, naquele momento, que Paulinho poderia estar sendo jogado de um avião dentro do Oceano Atlântico (ele, certamente, estava se referindo ao rio Araguaia mas, na época, eu não sabia) porque este era o destino de todos os comunistas que foram para a clandestinidade! Eu comecei a chorar... dizendo que minha mãe me esperava para o almoço e que, naquela altura estaria preocupada comigo!
Então ele levantou se, foi até a porta, destrancou e disse que eu poderia ir embora!
Foi angustiante, não consegui trabalhar no resto do dia. No dia seguinte o gerente da XEROX em Belo Horizonte (quem me contratou) chamou me para conversar, a respeito, porque ele recebeu um telefonema da sede, no Rio de janeiro, falando sobre o ocorrido (eles foram informados): Eu era irmã do Paulinho e que, a ordem era me demitir, mas
esse julgamento estava nas mãos dele!
Ele não demitiu, confiou nas minhas palavras e lá trabalhei por 6 anos...só saí quando o meu 1º filho ia nascer.
E, sobre o Paulinho eu queria dizer:
Não deu tempo dele se tornar um químico industrial, como ele pretendia, mas, de alguma forma ele fez cumprir quando tornou - se dono de uma farmácia, junto com seu companheiro Ciro Flávio Salazar, na região do Araguaia em um lugarejo chamado Palestina...e toda a sua saga como “médico” ou parteiro, noites inteiras na cabeceira da cama de doentes, até melhorarem, já foi escrito em prosa e verso nos livros que falam da
guerrilha.
E nós, familiares, só soubemos que ele estava no Araguaia e de sua historia como farmacêutico, depois da Anistia em 1979.
Portanto, 10 anos depois...
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