quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

JOÃO BATISTA MARES GUIA - DEPOIMENTO - 15/04/06

Depoimento coletado pelo Laboratório De Pesquisa Histórica do Instituto De Ciências Humanas e Sociais/Universidade Federal de Ouro Preto.


Universidade Federal de Ouro Preto/Instituto de Ciências Humanas e Sociais/ Laboratório de Pesquisa Histórica


Depoimento De João Batista Dos Mares Guia* - Projeto "A Corrente Revolucionária De Minas Gerais"


Entrevistador: Otávio Luiz Machado/Depoente: João Batista Dos Mares Guia/Loc al: Belo Horizonte-Mg/Data: 28/12/2002


Ficha técnica


Entrevistado: João Batista dos Mares Guia


Tipo de entrevista: Temática


Entrevistador: Otávio Luiz Machado


Levantamento de dados e roteiro: Otávio Luiz Machado


Conferência, leitura final e notas de rodapé: Otávio Luiz Machado


Elaboração de temas: Otávio Luiz Machado


Local: Belo Horizonte-MG


Data: 28/12/2002


Duração:1 h 30 min. aprox.


Fitas cassete: 2 (duas)


Páginas: 14


Proibida a publicação no todo sem autorização. Permitida a citação. A citação deve ser textual, com indicação de fonte. Permitida a reprodução.


Norma para citação


MACHADO, Otávio Luiz (org.). Depoimento de João Batista dos Mares Guia a Otávio Luiz Machado. Ouro Preto: Projeto “A Corrente Revolucionária de Minas Gerais”, 2003.


Otávio Luiz Machado : Seu nome completo e profissão

João Batista dos Mares Guia: João Batista dos Mares Guia, sociólogo. Atualmente trabalho como consultor na área de Patrimônio Histórico e Museus da Fundação Roberto Marinho. E como consultor em educação do Banco Mundial e diretamente com as secretarias estaduais de Educação.






Eu queria que você falasse um pouco da sua atuação estudantil e política. Como você começou a fazer algum tipo de atividade na Universidade?


Houve um processo ainda na fase infanto-juvenil de sensibilização para a questão social. Eu adorava espontaneamente os filmes que tinha como protagonista Hobin Hood. Impressionou-me muito toda a literatura de Monteiro Lobato, que me foi presenteada pelo irmão mais velho Marcos Luís dos Mares Guia. Além disso, eu vivia num bairro de classe média baixa e média numa região muito próxima do que era ainda em Belo Horizonte, na ocasião, as chamadas periferias mais pobres. Jogava muito futebol, convivia com pessoas de favelas e de bairros muito pobres, porque os campos de futebol eram localizados nas várzeas. Então, eu tive uma convivência muito próxima e observava estes contrastes, essas desigualdades e essas grandes diferenças sociais. E de alguma maneira isto aí impactava.






Mais tarde, no Bairro da Floresta, em Belo Horizonte, onde eu residia, existia a quitanda do Romeu, que era um comerciante muito politizado e ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Ali era o lugar freqüentado pelos poucos estudantes universitários do Bairro da Floresta, porque na ocasião o acesso ao antigo ginásio, e, sobretudo, ao antigo curso científico ou curso normal e principalmente à Universidade era um fato social tão raro, mas tão raro, que quando alguém do bairro passava no vestibular aquilo ali era celebrado como uma festa coletiva. E que elevava a auto-estima do bairro como um todo. Era muito interessante este processo. E os poucos residentes no bairro, entre eles o meu irmão Walfrido Silvino dos Mares Guia – que fazia engenharia –, o Camilo, o Ricardo e o Júlio Kabizuka, freqüentavam a quitanda do Romeu. E eu ali muito menino, isto nos idos de 63 – eu estava, portanto com quatorze para quinze anos. E 1964, quando começou a ditadura militar eu ainda não compreendia aquele fenômeno.






Eu ouvia as conversas. E o tom geral era obviamente um tom a favor da democracia, de crítica contra a ditadura militar e de comentários a respeito do que eventualmente poderia ser feito; os fatos do dia-a-dia mais dentro de um clima contido devido à censura, devido ao autoritarismo e devido ao predomínio de um certo medo coletivo. E aquilo foi me sensibilizando. Eu ficava como expectador, como ouvinte. Assim, passou o ano de 64, assim passou também o ano de 65. E eu me lembro que já em 63, e sobretudo em 64, eu comecei a solicitar dos meus pais, por ocasião dos aniversários e dos natais que, ao invés dos presentes tradicionais como roupas, brinquedos e coisas deste tipo, que me dessem livros. E me lembro certa feita que eu ganhei livros de todos os irmãos e dos pais, entre eles livros de Celso Furtado; essa literatura que começava a pensar sobre perspectivas de desenvolvimento da América Latina com uma reflexão nova. Josué de Castro era um autor que impactava muito, especialmente um público juvenil. Tinha um livro famoso dele chamado Geografia da Fome. E comecei a formar a minha biblioteca. E isto vai culminar no ano de 1966, quando eu tinha dezessete anos e estava fazendo o terceiro ano científico, com o início da minha participação no movimento estudantil.






Eu era, portanto um secundarista. E recentemente tinha iniciado no país as manifestações estudantis. Era um período difícil, porque no ano de 1965 tinha sido editado o Ato Institucional número dois (AI-2). E a ditadura militar começava a adquirir uma fisionomia de regime autoritário. No ano de 65, houve a prisão dos intelectuais que fizeram um manifesto a favor das liberdades democráticas. E no ano de 66, já com o início das manifestações estudantis e da reativação da União Nacional dos Estudantes (UNE), ocorreu a famosa Setembrada, quando houve manifestações estudantis em todo o Brasil contra o Ato Institucional número dois, contra a cassação de parlamentares e a favor das liberdades democráticas. E o movimento estudantil é duramente reprimido em todo o país, especialmente no Rio de Janeiro. E isto repercute também em Belo Horizonte.






Eu já vinha acompanhando a reorganização do movimento estudantil a distância como estudante secundarista, mas participei intensamente das passeatas em 66 dentro do contexto nacional chamado de Setembrada. E fomos naquela ocasião cercados pela Polícia Militar e pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na praça Afonso Arinos. Foi um episódio muito grave, porque chegou a haver aquartelamento militar do Exército por ordem de Brasília. E foi feito um cerco policial pelo DOPS liderado pelo Delegado Tacyr Menezes Sia e pela Polícia Militar em torno de toda aquela Praça. E o prédio ficou isolado. Eu me recordo que nós nos entrincheiramos; colocamos as carteiras de todo o prédio, que tem mais de vinte andares, bloqueando todos os acessos até o quarto andar ou quinto da Faculdade de Direito. E nos preparando para a eventualidade de uma invasão, que seria respondida com uma resistência dos estudantes. Isto durou todo o dia. E os dois Reitores, o da (Universidade) Federal, professor Aluísio Pimenta, e o da PUC/MG (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais), o então Bispo Dom Serafim Fernandes, negociaram com Brasília o dia inteiro. Até que na madrugada conseguiram a saída pacífica dos estudantes sob a garantia de que não haveria repressão e de que não haveria prisões, porque as cenas de confrontação foram muito duras e violentas durante boa parte do dia, especialmente no período da manhã. Sendo que num dado momento o Tacyr Menezes Sia foi atingido com uma pedra na testa, perdeu o controle por completo, sacou um revólver enorme e foi contido por um policial. Mas chegou a disparar o revólver contra o prédio da Faculdade de Direito. Então, o clima era muito tenso, e com a possibilidade de uma ação direta do próprio Exército. Saímos de madrugada.






E me lembro que ocorreu um episódio curiosíssimo: deviam ser três da madrugada – entre três e meia da madrugada ou quatro horas da madrugada –, quando os dois Reitores estavam juntos e nos orientaram para que saíssemos em pequenos grupos e em silêncio nos dispersássemos, o que foi a mesma coisa do que dizer nada, porque saímos em um único grupo, compacto. E ao longo da Rua da Bahia em direção a (Avenida) Afonso Pena formou, como se fosse uma pequena passeata, e alguém, que foi seguido por todos, começou a assoviar a Internacional. É um caso hilário: descemos um ou dois quarteirões da Rua da Bahia sem viva alma assoviando a Internacional ladeados pelo atual Cardeal Dom Serafim e pelo ex-Reitor Aloísio Pimenta. E aí nos dispersamos. E cada um foi para o seu rumo, cada um foi para a sua casa.






Eu diria que esse foi o ano do batismo, o ano de entrada no movimento estudantil. Fiz o vestibular e entrei no curso de sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH) da Universidade Federal de Minas Gerais. Liderei, já desde o mês de fevereiro do ano de 67, a luta pelo direito dos estudantes que foram colocados numa lista à parte como “excedentes”, porque excediam o número declarado de vagas das universidades. Lutávamos, portanto, para ampliar o número de vagas na Universidade e conseguimos uma vitória extraordinária, porque houve um impacto muito forte. A partir da luta de Belo Horizonte isto se irradiou para todo o Brasil. E foi um primeiro momento em que se produziu um alargamento e uma ampliação do número de vagas nas universidades federais brasileiras com o chamado “Movimento dos Excedentes”. Tanto é que daí em diante nunca mais universidade alguma divulgaria lista de estudantes excedentes. Quase que nós duplicamos em alguns cursos, inclusive na Medicina, o número de vagas naquele momento. Isto projetou muito a minha liderança, porque existia na ocasião uma revista nacional chamada Realidade, sendo a nossa luta matéria de capa. E o grupo dos estudantes “excedentes” da Faculdade de Filosofia foi fotografado e fez a capa desta edição. E eu liderei todo este movimento.






Então, adquiri uma grande projeção na Universidade e no movimento estudantil desde o início de 1967. E daí em diante firmaria esta projeção, sendo eleito Presidente do Centro de Estudos do curso de Ciências Sociais, inclusive numa disputa política aguerrida com o grupo da Ação Popular, que era um grupo muito forte e até então hegemônico. E que passaria a perder a hegemonia no movimento estudantil a partir do início do ano de 1967. Em seguida, articulamos também a eleição para o Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais. Ganhamos as eleições, elegendo primeiramente o Jorge Batista no ano seguinte, em 68. E o Athos Magno Costa e Silva, que depois viria a seqüestrar um avião da Varig em Montevidéu, para ir a Cuba. Ele depois foi para o exílio na Alemanha, e hoje ele reside em Goiás, onde é professor universitário, e também já foi Deputado Estadual pelo PT (Partido dos Trabalhadores). Tivemos o evento da eleição da União Estadual dos Estudantes de Minas Gerais (UEE/MG), e me lembro que o Raimundo Mendes, da Ação Popular (AP), é que foi eleito Presidente. E eu era o primeiro vice-presidente. Foi um dos raros momentos em que houve unidade das diferentes organizações revolucionárias que atuavam no movimento estudantil. E esta unidade se expressou na composição de uma chapa híbrida com Ação Popular. Eu representava uma organização que se chamava Comandos de Libertação Nacional (COLINA). O César Maia representava a Aliança Libertadora Nacional (ALN), que tinha o apelido de Corrente, liderada por Carlos Marighela. E era uma dissidência do Partido Comunista Brasileiro. E na prática eu assumi a liderança da UEE, porque o Presidente não teve um desempenho forte como líder.






A Ação Popular teve dificuldades de alguma maneira para cumprir os compromissos de unidade que foram estabelecidos. Na prática, essa unidade se desdobrou em quase que duas UEEs; uma UEE oficial, que passou a ser liderada por mim; e uma UEE paralela, que na prática não funcionou, porque não teve credibilidade e repercussão. Mas como quer que seja, havia uma particularidade muito importante do movimento estudantil naquele momento: nós disputávamos eleições onde as regras do jogo eleitoral eram respeitadas. Não havia lugar para o golpismo, como depois aconteceu nos anos 70, nos anos 80 e mesmo nos anos 90 no movimento estudantil, em que raramente os resultados eleitorais eram respeitados, especialmente por algumas organizações que se dizem de esquerda. E naquele tempo as regras do jogo eleitoral eram respeitadas pelas diversas correntes que atuavam no movimento estudantil, embora nenhuma das organizações tivessem como foco de sua visão de mundo ideológica a construção da democracia republicana, que era vista por todos nós como expressão de um regime político que no fundo no fundo era como que uma celebração do capitalismo, da economia de mercado, das desigualdades sociais e das diferenças entre as classes sociais.






A nossa visão dita socialista era alguma coisa muito anteposta, muito contraposta ao ideário democrático que hoje todos nós sustentamos, professamos e vimos como a expressão mais civilizada do modo de convivência das pessoas entre si. Então, esse aspecto era importante sublinhar: essa contradição curiosa do ideário político-ideológico que não contemplava a democracia republicana. Entretanto, nas nossas práticas de competição eleitoral no mundo acadêmico universitário legal nós respeitávamos essas regras do jogo. E tínhamos disputas obviamente renhidas em função da pluralidade de organizações revolucionárias que atuavam no movimento estudantil. Invariavelmente todas as lideranças eram ligadas a diferentes organizações. Então, assim passamos o ano de 1967, que foi o ano do meu ingresso já como universitário no movimento estudantil.






A UEE estava na clandestinidade neste período?


A União Nacional dos Estudantes e as Uniões Nacionais de Estudantes tinham sido colocadas na ilegalidade. Então, tudo era clandestino. As nossas reuniões e os congressos eram todos clandestinos como de resto as reuniões da UNE. Eu me lembro que o Congresso Nacional da União Nacional dos Estudantes, o XXIX, foi realizado em 67 na clandestinidade. No ano anterior tinha sido realizado um outro Congresso da UNE na clandestinidade em meio as grandes dificuldades. Em geral, tinha-se muito apoio da Igreja Católica, das organizações religiosas e das ordens religiosas com uma infra-estrutura que nos dava suporte. O de 1967, salvo-engano, foi realizado em Belo Horizonte, também sob clandestinidade. Fizemos um Congresso da UEE inteiramente clandestino sob proteção de uma ordem religiosa de irmãs italianas da Congregação Helena Guerra. E assim passamos o ano de 67. E ocorriam coisas muito interessantes, porque os estudantes na ocasião eram da classe alta e das classes médias, com predominância do que hoje chamaríamos de classe média alta.






Éramos muito poucos estudantes no Brasil – não mais que trezentos mil em todo o Brasil naquele momento –, e todos de um segmento sócio-econômico e cultural mais privilegiados. Então, no horizonte existencial dos estudantes e na sua vida cotidiana não se colocavam questões como preparação para a empregabilidade, expectativa de estabilidade patrimonial, estabilidade financeira, acumulação de riquezas ou uma preocupação com a profissão e o êxito profissional. Isso não fazia parte do nosso horizonte de mundo. Claro que isso refletia em parte às nossas classes sociais de origem, já que não tínhamos um problema de carecimento, de carências e de privações básicas e, portanto, nós poderíamos nos dedicar à cultura, à filosofia, às artes, à literatura, à atividade política e à atividade revolucionária sabendo que teríamos um suporte ou uma sustentação na esfera familiar de alguma maneira. Mas o fato relevante a ser registrado era esse: que em geral a juventude militante era uma juventude razoavelmente culta, preocupada em fundamentar a sua concepção de mundo ou a sua visão de mundo de um modo mais abrangente, tendo uma perspectiva da história, como chamávamos uma filosofia da história. Algo muito dogmático hoje. Mas na ocasião era uma preocupação generalizada de todos nós. Um conhecimento da literatura revolucionária, principalmente Karl Marx e (Vladimir Ilitch) Lênin, como suporte para o nosso ideário socialista. E uma busca de uma justificativa teórica e intelectual um tanto quanto possível para as escolhas que fazíamos dentro do campo revolucionário, porque as diferentes correntes tinham desde uma filiação ortodoxa leninista-bolchevista – que era o caso da Organização Política Marxista – “Política Operária” (POLOP) –, que era formada por pessoas em geral estudiosas e cultas com um doutrinarismo ortodoxo do tipo bolchevique-leninista clássico.






Tínhamos a Ação Popular, que tinha uma origem católica interessante, e que depois se desdobra na Ação Popular, e que permanece fiel a esta orientação católica de esquerda. Mas o grosso da Ação Popular porta pelo marxismo-leninismo numa vertente mais maoísta, que irá entender a realidade brasileira como possuidora de características assemelhadas à China na época da revolução maoísta, bem como perceber no campesinato virtudes revolucionárias, ou seja, uma expressão quantitativa e social mais relevante do que na verdade ele tinha. E ainda se tem um entendimento enviesado do que é o Brasil naquela ocasião como se fosse um país semi-feudal.






A partir disto, focaliza a luta popular-revolucionária em termos de uma aliança operária e camponesa como fundamental para reunir apoios no meio urbano para apoiar a luta camponesa emancipatória, que é a luta do proletariado através da luta armada, mas com uma longa acumulação na luta de massas por assim dizer. E esse grupo vai adotar a luta armada urbana como meio de suporte para a luta revolucionária rural. E aí se tinham as correntes de filiação castrista. Aí também tínhamos a Aliança Libertadora Nacional, que vinha do PCB, e que rompe com o que era chamado de reformismo, que viam a realidade como se fosse um longo processo de acumulação de lutas, passando pela redemocratização. E isto esta visto como se fosse uma capitulação em face do capitalismo. Marighela lidera uma corrente que rompe com o PCB. Vladimir Palmeira e outros lideram o que vai ser chamado como Dissidência da Guanabara (DI-GB, Dissidência do PCB da Guanabara), que depois vira MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro) já como grupo guerrilheiro de luta armada urbana. Nós éramos um racha da POLOP, porque víamos a POLOP na ocasião com uma visão de luta muito prolongada de acumulação operária nas fábricas e nos bairros operários que não dava respostas ao fato da ditadura militar e da necessidade de uma ruptura radical com a ditadura militar. Mas como quer que seja, de uma maneira geral tínhamos uma visão romantizada, profundamente idealista e nada científica do que era a realidade brasileira e latino-americana.






A vitória da Revolução Cubana se afigura para nós como sendo uma espécie de clamor do destino. Esse era o destino da América Latina. Mas como quer que seja era muito interessante que os estudantes tinham na ocasião, e que hoje não têm, que era uma consciência de pertencimento latino-americano, uma latino-americanidade, que se expressa muito na música latino-americana e brasileira daquele período, e que mais tarde Milton Nascimento vai ser por assim dizer um evocador poético disso. Mas isso era muito forte, e não só a latino-americanidade, como também um certo internacionalismo da tradição revolucionária maior. E que se expressou já no ano de 67 numa das coisas mais notáveis que aconteceu no país naquele momento, porque nós mobilizamos o estudantado universitário do Brasil inteiro fazendo passeatas monumentais que se repetiria em 68, mas sobretudo em 67, que foi a solidariedade ao povo do Vietnã. Primeiro contra a guerra e contra a ocupação do território do Vietnã por aquilo que chamávamos de um imperialismo americano, que na prática era isso mesmo. E em seguida de apoio ao povo do Vietnã, através da mobilização de todos os estudantes para colocar a literatura sobre o assunto em discussão ou em debate e com isto sensibilizar, mobilizar e produzir interesse para que as pessoas estudassem e conhecessem melhor o que acontecia numa escala planetária. E ao mesmo tempo num interesse muito grande pelo cinema. Existia uma Escola de cinema na PUC/MG, e assim se assistia a esse cinema e se discutia esse cinema, porque efetivamente havia uma certa cultura estética em torno do cinema, literatura e teatro.






O sholl-medicina foi criado por companheiros nossos, especialmente pelo Herbert – que mais tarde morreria de Aids – revolucionário ligado ao (Carlos) Lamarca, que viveu depois no exílio. O Herbert Eustáquio Carvalho foi uma figura central durante três anos no sholl-medicina, porque era ele quem escrevia roteiros e coordenava os ensaios. E era muito interessante, porque era um teatro de alto nível. Aliás, se mantém esta tradição até hoje com muito menos impacto, mas de uma certa maneira se mantém. Eu estou dizendo isso para dar um panorama do que era a juventude na ocasião. As nossas expectativas não eram imediatas, nem eram auto-centradas no indivíduo. As nossas expectativas nada tinham a ver com mercado, com inserção profissional ou com acumulação. Eram expectativas nesta direção cultural, política, revolucionária e numa linha muito forte de solidariedade. Era o tempo do sonho e da utopia. Isto era muito importante. E que aliás foi uma marca muito poderosa da década de 60 e dos anos 60 de uma maneira geral.






Quais tendências tinham um maior predomínio?


Foram altos e baixos. A Ação Popular sempre foi muito poderosa e exercia uma certa hegemonia até 66. Mais com a organização da COLINA, em 67, nós tínhamos duas lideranças especialmente fortes no movimento estudantil, que eram o Jorge Batista e eu. O Jorge Batista tinha sido Presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE). Eu liderava a União Estadual dos Estudantes. Todas as passeatas em Belo Horizonte nós que lideramos. Toda a direção geral do movimento estudantil nós que demos, e começamos assim a ganhar as eleições. Tanto é que ganhamos o DCE em 67 e ganhamos o DCE em 68; o da (Universidade) Federal (de Minas Gerais), o da PUC (MG), não, porque permaneceu com a Ação Popular. Ganhamos um grande número de Diretórios Acadêmicos e liderávamos na prática a União Estadual dos Estudantes. E no caso da União Nacional dos Estudantes, a Ação Popular tinha uma proeminência e tinha líderes de grande projeção e de grande visibilidade. No Congresso da UNE nós teríamos uma grande disputa entre Ação Popular de um lado, e um agregado de forças que reunia desde a ALN, passando pela própria COLINA à Dissidência da Guanabara. E o resultado não pudemos saber porque fomos presos durante o XXX Congresso da UNE, em Ibiúna.






A COLINA ideologicamente e em termos de ação como era realmente?


A COLINA foi formada por um grupo dissidente da Política Operária, a POLOP, cuja filiação era bolchevique-leninista. E as pessoas que lideraram foram o Apolo Heringer Lisboa e o Carlos Alberto Soares de Freitas, que depois morreria sob tortura numa morte cruel, cruel. Ele foi literalmente afogado em água e sal depois que passaram óleo congelado na região do coração com vários ventiladores ligados para provocar um ataque cardíaco. Foi cruelíssima a morte dele. E o corpo pelo que consta está desaparecido. A não ser que eu esteja enganado, mas pelo menos durante muitos anos o corpo do Beto (Carlos Alberto Soares de Freitas) não apareceu. Mas o Carlos Alberto Soares de Freitas, e a Dilma Rouseff – que agora vai assumir como Ministra das Minas e Energia do Governo Lula, reside no Rio Grande do Sul e é filiada ao PT – eram nossos companheiros, bem como o Apolo Heringer Lisboa. Tínhamos também o Ângelo Pezzutti, que sofreu horrores sob tortura; este é um caso quase que tragicamente paradigmático, dolorosamente de tortura, porque chegou a ser cobaia de tortura diante de militares do Exército na ocasião. E isto foi narrado e denunciado no Tortura Nunca Mais. Internacionalmente é um fato conhecido. Depois ele foi trocado, quando do episódio do seqüestro de um embaixador, e foi para a Argélia. E muitos anos depois de já ter concluído o curso de medicina, quase terminando o doutorado em psiquiatria e trabalhando num hospital psiquiátrico na periferia de Paris, ganhou do pai, que residia em Araxá, uma motocicleta, e quando dirigia sem capacete teve uma queda, bateu o crânio no chão e morreu. Então, estas pessoas lideravam junto com Herbert Eustáquio Carvalho a saída da POLOP e a organização do Comandos de Libertação Nacional. Tem também o Guido, que é um artista plástico que participou disto junto com um grupo da COLINA na Bahia, um grupo da COLINA no Rio de janeiro, e salvo-engano tinha um grupo da COLINA no Rio Grande do Sul. Em São Paulo, não.






Tinham membros da COLINA em Ouro Preto?


Tinha uns membros, mas eu não me lembro do nome das pessoas. Mas em Ouro Preto, o núcleo mais forte era o núcleo da Corrente, da Ação Libertadora Nacional, que era o Lincoln (Ramos Viana), que foi Presidente do Diretório Acadêmico, e o César Maia, que era meu colega na Diretoria da UEE. Eram estas pessoas. Ouro Preto tem uma particularidade, porque tinha uma juventude universitária de tamanho desproporcional ao tamanho total da população. Portanto, muito grande e sem muitas opções em termos de lazer, cultura e participação. E é uma cidade que convida entre aspas à conspiração. Então, ali o movimento estudantil foi muito forte, e tinha um caldo de cultura, porque a medida que boa parte do estudantado não tinha como se manter e dependia das repúblicas, a luta pela ampliação do número de repúblicas então era uma luta que coincidia com a condição para que o estudante pudesse permanecer em Ouro Preto e estudar. Isso certamente teve um grande impacto entre os estudantes de um modo geral. E afora isso, na Universidade, naturalmente se vive um clima mais libertário. Era natural que as lutas do movimento estudantil encontrassem um forte respaldo entre os estudantes da UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto), onde segundo consta nunca se observou uma manifestação de uma direita estudantil organizada, como aconteceu na Universidade Mackenzie, que era uma universidade dos ricos em São Paulo, e um foco da direita organizada no movimento estudantil. Mas em Ouro Preto, não, pois era uma universidade pública com os estudantes das classes médias de um modo geral, mas que tinham algum tipo de carência. Então, a luta pelas repúblicas era muito forte, e ali a liderança toda estava organizada e com predominância de vínculo com a ALN.






Quais atividades armadas que a COLINA realizou?


A COLINA se considerava uma organização castrista, e na ocasião surgiram dois grandes panfletos apresentados na forma de folheto chamado “Castrismo: uma longa marcha”, que era uma ode romanceada, extremamente romântica e tipicamente juvenil do que tinha sido a Revolução Cubana. Era como se a Revolução Cubana não tivesse uma longa história, inclusive de acumulação de lutas sociais no campo e na cidade; e numa circunstância excepcionalíssima, porque a ditadura de Batista havia perdido inclusive o apoio norte-americano, Fidel Castro havia conquistado uma certa confiabilidade como uma liderança digamos confiável do ponto de vista da economia de mercado, da propriedade privada e da democracia. Em suma, um conjunto de circunstâncias extremante favoráveis. E a leitura que se fez e que nós fizemos foi a leitura do foco guerrilheiro bem sucedido, emancipatório e que fosse capaz ele próprio de substituir a vontade coletiva, a acumulação de percepções do que era a ditadura, a mobilização social e como se isto tudo pudesse ser um resultado da ação exemplar quase que miraculosa do foco guerrilheiro. Era esta a visão: uma espécie de fixação da luta armada como centro da estratégia que produziria como conseqüências virtuosas a acumulação social de forças e a adesão. Sabe se lá como que as pessoas tomariam consciência para manifestar essa adesão, mas era a visão que tínhamos. E pra organizar a luta armada no campo se teria uma estratégia militar de guerrilha para obter recursos, provisões, logística e uma longa acumulação de infra-estrutura. E isto deveria ser proporcionado pela guerra revolucionária urbana.






Então, os estudantes revolucionários ou os revolucionários de um modo geral deveriam sair do movimento de massas e participar da organização clandestina guerrilheira armada para fazer o que nós chamávamos de expropriações, que eram assaltos aos bancos organizados para se obter recursos. Então, tinha que se assaltar o carro, que era o meio para organizar a ação, e o banco, que era o foco principal para obter o recurso para a compra de armas e para a sustentação dos revolucionários, como a organização dos campos de treinamento e o posterior suporte da própria luta armada revolucionária no campo. Era essa a visão que a COLINA tinha. Cada um tinha uma visão diferenciada, mas fundamentalmente o foco comum a crença de que a luta armada revolucionária era caminho essencial para se derrubar a ditadura. E havia um contexto intelectual que é importante ser levado em conta. Um autor como Celso Furtado estava numa linha muito próxima da CEPAL (Comissão de Economia para a América Latina) ao estudar os dilemas da América Latina entre subdesenvolvimento, estagnação e desenvolvimento. Mas basicamente esta literatura ficava no campo do diagnóstico e no campo de uma certa projeção da idéia de desenvolvimento sem apresentar por assim dizer alguma resposta concreta pra aquela situação concreta.






Era um campo intelectual muito interessante e muito identificado com o que foi chamado de nacional-desenvolvimentismo, com uma sustentação do que seria fundamental para a democracia. Mas uma democracia mantida com uma aliança das forças populares, não em termos de campesinato e proletariado, mas das forças populares, no caso do Brasil o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) e os partidos à esquerda que, com o apoio da burguesia nacional progressiva e desenvolvimentista, teriam interesses de crescer a economia nacional ao formar um empresariado nacional num mercado apoiado pelo Estado para poder se constituir um empresariado próspero com uma certa linha de autonomia em face da economia internacional. Então, essa era a idéia. Enquanto isto boa parte do diagnóstico feito na literatura por autores à esquerda, e todos eles ideólogos não apresentavam fatos que pudessem ter relevância não só naquele momento mas posteriormente como literatura de referência. Eu me recordo aqui a Andras Gudi Frank, um alemão que escreveu sobre a América Latina, nitidamente com o viés psicológico de quem desejou um dia ser revolucionário, e que já na idade mais adulta e até mais avançada adere à revolução idilicamente escrevendo sempre como um revolucionário idílico e nunca como um literato acadêmico e pesquisador. Entre nós, Teotônio dos Santos, que não fez literatura científica nas pesquisas em momento algum, mas fez discurso ideológico. Mas isso era uma referência forte, assim como Ruy Mauro Marini, que era um sociólogo mais consistente, mas de alguma tudo muito enviesado no sentido ideológico da luta revolucionária e colocando como dilema para a América Latina o seguinte: ou socialismo, que se identificava com a liberdade, ou barbárie, da ditadura e do fascismo. Esse era o dilema colocado. E mais do que isto, o diagnóstico que todos faziam era de que o capitalismo estaria vivendo no nível internacional uma crise profunda e talvez definitiva, essas coisas fantasiosas que são criadas de tempo em tempo como se um ciclo de crise não fosse ele mesmo a condição para um novo ciclo expansivo.






Então, enquanto estava acontecendo exatamente no Brasil uma inflexão econômica poderosa de 64 a 67, na era de Roberto Campos houve uma reordenação radical do Estado com a produção de poupança via fundo de garantia, que tinha na criação da própria poupança mecanismos para alavancar políticas. Houve um controle do aparelho de Estado – uma reorientação do aparelho do Estado – para alavancar um surto de crescimento econômico. Houve uma forte estatização, com a criação de empresas estatais para alavancar e dar suporte burocrático estatal a uma etapa nova do crescimento da economia, que vai repercutir rapidamente com uma rápida formação de novas classes médias no Brasil de alto poder consumidor fortemente amparadas pelo Estado com políticas habitacionais tipo BNH. E aí se esqueceu dos pobres e se dedicou às classes médias com a gratuidade do ensino universitário e de várias outras regalias, num ciclo expansivo poderoso. No entanto, havia os que apontavam que o caso brasileiro era um caso de crise definitiva do capitalismo, e as alternativas eram socialismo ou barbárie, mesmo que o capitalismo estivesse se afirmando ainda que sob o regime autoritário militar.






Naquele contexto houve uma disputa interna, ideológica e burocrática do poder militar, e obviamente a chamada linha dura que prevaleceu, porque encontrou neste empresariado em transformação um forte apoio, inclusive internacional, mas criou-se um dualismo: as organizações de esquerdas tinham iniciado a luta armada em vários lugares do país e veio o AI-5 (Ato Institucional Nº 5), em dezembro de 1968, que promoveu um novo ciclo de cassações. Já tinham suspendido a eleição de Presidente, de Governador e de Prefeito de Capital, e mantiveram o bipartidarismo controlado, que seria muito importante para o futuro da transição política. De alguma forma permaneceu dentro do regime autoritário uma forma de competição eleitoral regular periódica, que de alguma isto aí era desaguadouro para uma articulação de oposições para a luta política com muitos limites, mas de alguma maneira era uma possibilidade. E isto permaneceu. Então nós não tivemos um totalitarismo clássico, embora tenhamos tido um regime autoritário burocrático com características próprias num um período acentuadamente repressivo e duro como foi o período Médici, que se estendeu um pouco até 7

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